Cumpridas as exéquias funerárias,
com a debandada das autoridades locais presentes na cerimónia, face às notícias
que corriam, de boca em boca, sobre a Vitória da Revolução com a detenção do Chefe
do Governo e do Presidente da República e o sururu que. como lavaredas de um
incêndio, passava de casa em casa e de terra em terra, Manuel Maria estava em vibrante
euforia interior e desejoso de partir para Lisboa, a tempo de poder festejar
com seus camaradas e participar activamente, nos acontecimentos revolucionários.
Porém, tendo chegado nesse próprio dia e, sendo tão breve a sua estadia,
buscava a ocasião propícia para anunciar o seu imediato regresso a Liaboa, sem
desagradar às duas Mulheres, que o amavam como se ambas sua mãe fossem.
Estava, pois, Manuel Maria
embaraçado com esta preocupação de zelo e carinho, quando a Camillinha surge dos
seus aposentos e, com um sorriso de felicidade, pede para passarem ao
escritório, um amplo espaço, com as paredes cobertas de livros antigos, até então
ocupado exclusivamente por Frederico Amásio e, atalhando a surpresa do jovem-,
gracejou “podes entrar à vontade,;
tenho a certeza que a alma de Frederico Amásio deixou de assombrar esta casa”.
Sentaram-se lado a lado, no
espaçoso sofá revestido a couro e a fidalga segurou a mão do rapaz, que manteve
por momentos entre as suas e depois beijou-a e percorreu-lhe as linhas da mão,
como estivesse a traçar-lhe o destino. Momentos depois a Camillinha levantou-se,
deu uns passos nervosos pelo escritório, denotando ansiedade e assumiu um tom
solene para dizer, enfática,“sabes,
meu anjo, que a partir de hoje, a morte de Frederico Amásio faz de ti um
homem rico?...” _ Manuel Maria olhou-a, levantou-se
do sofá a sorrir, abraçou a Camillinha com afeto e com um sorriso traquina “sabe madrinha que deixei de acreditar no Pai
Natal, faz muitos anos!... Portanto, não me leve a mal, mas não acredito. Por
que diabo o Frederico Amásio me faria seu herdeiro? Detestávamo-nos mutuamente, portanto nada devemos um ao outro – continuou,
com ironia a marcar-lhe as palavras – aliás deve haver muito boa gente que não se coibirá de lhe chamar pai, se tal for necessário, para lhe ficar com a herança…"
E, com veemência: "mas se a madrinha insistir em tal disparate
desde. já declaro que não aceitarei a generosidade, vinda de quem vem. Grato.
sim, estou à madrinha e a minha mãe, que ainda com o coração despedaçado, me
enviaram para Lisboa, libertando-me das garras do monstro, apoiando-me sempre
nas coisas grandes e pequenas, tanto quanto possível para quem está longe de
casa, ou para quem casa não tem. Hoje, posso orgulhar-me de ter conseguido o
curso de Arquitectura e tenho projectos para o futuro. que não passam pela a herança
do “amásio”. A minha vida devo-a a duas mulheres, que me amam como se fossem
uma só, que nunca esquecerei, que vale muito mais que todas as heranças de
todos os “amásios” deste mundo. E dando livre curso às palavras “se durante a vida me enjeitou com um filho,
também agora, depois da morte eu o renego como pai, como rejeito qualquer benefício
material que dele provenha”. Aliás - acrescentou,
em jeito de provocação, (assaz ingénua)
aliás, sou militante comunista e nunca soube de um comunista que fosse rico…”
A Camillinha agitava-se, incrédula,
procurando acalmar Manuel Maria e deter o turbilhão das palavras, que vinham
agora à superfície, “vingando-se” dos silêncios recalcados, tantas vezes e, em verdade.
tão bruscas e arrebatadas as palavras, que mais pareciam terem ganho autonomia e
vontade próprias, como se fossem inscrição de todas as mágoas e de todas as
humilhações e de todas as injustiças do mundo, que explodiam, na fala do jovem,
sem que as pudesse dominar, tão vivas e gritantes que atordoavam a sensibilidade da
fidalga.
Continuou Manuel Maria adensando o discurso, “aliás se houvesse justiça na Terra quem merecia
ficar com a herança seria, o Zé Canhoto e a sua família, que vezes sem conta, foram humilhados pelo senhor da Casa Grande, que se julgava um Deus sobre
a Terra, e a sua iniquidade o levou a ponto de exigir ao Zé Canhoto, publicamente,
num domingo, à saída da missa, que, de joelhos, lhe pedisse, perdão! ele,
a mulher e a ranchada de filhos maltrapilhos - mas pedir perdão, por quê, meu
Deus? se a única coisa que o desgraçado
desejava era uma côdea de pão para alimentar os filhos e poder ganhar a vida, com o suor do seu rosto e suas longas
mãos, agora erguidas ao céu a implorar misericórdia a um velhaco
que, na sua avareza, quis despedir o desgraçado meeiro, por causa de uns
escassos alqueires centeio, que a penúria em que vivia aquela família mais
que justificavam o “esquecimento” em entregar ao patrão o seu tributo umas terras de fragas, que nem
as cabras queriam. Ainda hoje, tantos anos passados, me queima os olhos aquele
espectáculo do Amásio, montado no cavalo e o Esquerdo a mulher e a ranchada de filhos, de joelhos descalço e
dobrados, a erguerem suas longas mãos de
trabalho, rogando os restos de dignidade, em nome de uns restos do direito â sobrevivência e as chibatadas que desciam do alto do cavalo sobre o seu corpo
andrajoso e mártir. E
nenhum homem se mexeu, seguido, evitando olhar e seguindo sua vida: - “Desejo
um Santo dia, meu Senhor….”
“Não
aceitarei pois tal herança, minha madrinha, - continuou, Manuel Maria com veemência, dirigindo-se
diretamente à Camillinha que, agora procurava a todo o transe, dominar o
discurso do jovem, mas ele prosseguia cego de raiva. como se fala-se consigo
mesmo. - nem a herança, nem qualquer
riqueza acumulada pelo trabalho de escravatura, a que foram sujeitos muitos dos
trabalhadores dos domínios da Casa Grande...”
Ouvindo, no corredor, o tom elevado
das palavras de Manuel Maria e a fidalga a procurar contê-lo, a Violante entrou
no escritório e, perplexa com a gritaria, segurou Manuel Maria, olhou de frente
e, sacudindo-o pelos ombros, disse com voz firme: -“ Que é isso, menino? Que gritaria é esta?
Achas que isto são termos de te dirigires à madrinha? Vamos lá acabar com a
gritaria e falar como pessoas crescidas! que se passa?...”
Foi a fidalga quem respondeu. Manuel
Maria, ainda perturbado pelo destempero das suas palavras. esteve -vai não vai” para responder, com palavras violentas, a sua própria mãe Violante (“meta-se
na sua vida e deixe a vida dos outros, que a sua tem muito para contar”...) mas engoliu a tempo os subentendidos e a agressividade e foi a Camillinha
quem respondeu: “o senhor
teu filho nega-se aceitar a perfilhação e a herança do Frederico Amásio!...”
- “O
senhor meu filho já tem idade para ter juízo - proclama Violante- e
não confundir alhos com bugalhos...” E
acrescentou com uma ponta de ironia é percorrer-lhe os lábios: -“não queres ser parecido com o agora
defunto, senhor da Casa Grande, mas para o bem e para o mal ele é teu pai e, se
algum de nós tivesse dúvidas (e não te esqueças que fui eu quem te trouxe ao
mundo) olha que bastaria ouvir as tuas palavras arrogantes
e a tua soberba para ficarmos a saber donde provêm tais qualidades...” E continuou, agora mais grave: “se tu queres ou não ficar com a herança é
problema teu, fui sempre pobre e pobre hei-de morrer, mas não esqueças os teus
deveres para com aqueles que te criaram; é mesquinhez tua e uma grande vaidade que brada aos céus rejeitares aquilo que
Deus, em Sua Divina Sabedoria te co
Manuel Maria embatucou! A fidalga, embora
um tanto chocada com as palavras chãs e rudes da Violante (“tão desastrada, benza Deus!---”) e com sua falta de tento e de senso, pois não foi capaz
de respeitar a ignomínia e a afronta recebidas de Federico Amásio, logo na noite de núpcias da fidalga, mas fez-se
desentendida e. dando por terminada a conversa “Manuel
Maria terá muito tempo para pensar neste assunto. Agora, basta ver os seus
olhos a arder para sabermos que o seu pensamento está em Lisboa aonde a
revolução triunfadora o espera. E tens razão meu filho!... São os grandes
momentos da história pátria que se definem os grandes homens!.. Vai pois, para
Lisboa e faz o que tens que fazer e a tua consciência te ditar. Voltaremos à
herança quando for caso disso e o terreno estiver preparado!... E, com mal disfarçado despeito, quando não uma
pontinha de sarcasmo,
“aliás se a revolução for aquilo que eu penso que o será, que importância tem
herança de um fidalgote desbragado?..
E, a concluir,
“teremos, porém, em boa conta a tua
opinião procurarei sarar uma das tuas dores de menino, chamando o Zé Esquerdo
e a família, que nos ajudarão, a mim e a tua mãe a administrar esta Casa!...
E o “escrevente” que não é um homem justo, nem “sage” , mas que nesta prosa bárbara, que se quer literária, assume as dores e favores do “ilustre” escritor Manuel Maria, que há-de ser, interroga-se não para saber “como se escreve um romance”, questão insanável que tanto o atormentou, mas pelo contrário, interroga-se agora, por sua vez, o escrevente “como termina um romance e se escreve a palavra Fim”. Soubesse ele e todos ficaríam felizes! Os leitores, (se leitores houver) sem o peso de mais umas páginas e mais uns bocejos! E o “escrevente” a passar carta de alforria ao “escritor” Manuel Maria, e a manter férias de letras e partir para onde vento o levasse. Constata, porém, o escrevente que duas belas mulheres, noutro tempo literário, lá trás, esperam de ManuelMaria, um sinal para os três construírem um final "comme il faut - apoteótico e misterioso, qual Carta Que Nunca Te Escr eer ei…
Manuel Veiga
2 comentários:
Grande Manuel Maria, gostei da sua tirada, cheio de razão. Como não? É claro que a Violante teve de o "repreender".
A Camilinha mais contemporizadora, sabe que não é com exigências que vai lá. Começa por dar ao seu rico menino um tempo para reflectir. E também vai fazer algo que o há-de amolecer:Dar a mão ao Canhoto e à sua rachada de filhos. É de justiça!
Caro Escrevente, pode crer que não queremos pressioná-lo. O "Final" virá quando tiver de ser.
Grande abraço.
Olinda
Corrigindo:
Onde está "rachada", deve ler-se:
"ranchada".
Sorry.
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