quarta-feira, maio 31, 2023

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI


Cumpridas as exéquias funerárias, com a debandada das autoridades locais presentes na cerimónia, face às notícias que corriam, de boca em boca, sobre a Vitória da Revolução com a detenção do Chefe do Governo e do Presidente da República e o sururu que. como lavaredas de um incêndio, passava de casa em casa e de terra em terra, Manuel Maria estava em vibrante euforia interior e desejoso de partir para Lisboa, a tempo de poder festejar com seus camaradas e participar activamente, nos acontecimentos revolucionários. Porém, tendo chegado nesse próprio dia e, sendo tão breve a sua estadia, buscava a ocasião propícia para anunciar o seu imediato regresso a Liaboa, sem desagradar às duas Mulheres, que o amavam como se ambas sua mãe fossem.

Estava, pois, Manuel Maria embaraçado com esta preocupação de zelo e carinho, quando a Camillinha surge dos seus aposentos e, com um sorriso de felicidade, pede para passarem ao escritório, um amplo espaço, com as paredes cobertas de livros antigos, até então ocupado exclusivamente por Frederico Amásio e, atalhando a surpresa do jovem-, gracejou “podes entrar à vontade,; tenho a certeza que a alma de Frederico Amásio deixou de assombrar esta casa”.

Sentaram-se lado a lado, no espaçoso sofá revestido a couro e a fidalga segurou a mão do rapaz, que manteve por momentos entre as suas e depois beijou-a e percorreu-lhe as linhas da mão, como estivesse a traçar-lhe o destino. Momentos depois a Camillinha levantou-se, deu uns passos nervosos pelo escritório, denotando ansiedade e assumiu um tom solene para dizer, enfática,“sabes, meu anjo, que a partir de hoje, a morte de Frederico Amásio faz de ti um homem rico?...” _ Manuel Maria olhou-a, levantou-se do sofá a sorrir, abraçou a Camillinha com afeto e com um sorriso traquina “sabe madrinha que deixei de acreditar no Pai Natal, faz muitos anos!... Portanto, não me leve a mal, mas não acredito. Por que diabo o Frederico Amásio me faria seu herdeiro? Detestávamo-nos mutuamente, portanto nada devemos um ao outro – continuou, com ironia a marcar-lhe as palavras – aliás deve haver muito boa gente que não se coibirá de lhe chamar pai,  se tal for necessário, para lhe  ficar com a herança…"

E, com veemência: "mas se a madrinha insistir em tal disparate desde. já declaro que não aceitarei a  generosidade, vinda de quem vem. Grato. sim, estou à madrinha e a minha mãe, que ainda com o coração despedaçado, me enviaram para Lisboa, libertando-me das garras do monstro, apoiando-me sempre nas coisas grandes e pequenas, tanto quanto possível para quem está longe de casa, ou para quem casa não tem. Hoje, posso orgulhar-me de ter conseguido o curso de Arquitectura e tenho projectos para o futuro. que não passam pela a herança do “amásio”. A minha vida devo-a a duas mulheres, que me amam como se fossem uma só, que nunca esquecerei, que vale muito mais que todas as heranças de todos os “amásios” deste mundo.  E dando livre curso às palavras “se durante a vida me enjeitou com um filho, também agora, depois da morte eu o renego como pai, como rejeito qualquer benefício material que dele provenha”. Aliás - acrescentou, em jeito de provocação, (assaz ingénua) aliás, sou militante comunista e nunca soube de um comunista que fosse rico…”

A Camillinha agitava-se, incrédula, procurando acalmar Manuel Maria e deter o turbilhão das palavras, que vinham agora à superfície, “vingando-se” dos silêncios recalcados, tantas vezes e, em verdade. tão bruscas e arrebatadas as palavras, que mais pareciam terem ganho autonomia e vontade próprias, como se fossem inscrição de todas as mágoas e de todas as humilhações e de todas as injustiças do mundo, que explodiam, na fala do jovem, sem que as pudesse dominar, tão vivas e gritantes que atordoavam a sensibilidade da fidalga.

Continuou Manuel Maria adensando o discurso, “aliás se houvesse justiça na Terra quem merecia ficar com a herança seria, o Zé Canhoto e a sua família, que vezes sem conta, foram humilhados pelo senhor da Casa Grande, que se julgava um Deus sobre a Terra, e a sua iniquidade o levou a ponto de exigir ao Zé Canhoto, publicamente, num domingo, à saída da missa, que, de joelhos, lhe pedisse, perdão! ele, a mulher e a ranchada de filhos maltrapilhos - mas pedir perdão, por quê, meu Deus? se  a única coisa que o desgraçado desejava era uma côdea de pão para alimentar os filhos e poder ganhar a vida, com o suor do seu rosto e suas longas mãos,  agora erguidas ao céu a implorar misericórdia a um velhaco que, na sua avareza, quis despedir o desgraçado meeiro, por causa de uns escassos alqueires centeio, que a penúria em que vivia aquela família mais que justificavam o “esquecimento” em entregar ao patrão o seu tributo umas  terras de fragas, que nem as cabras queriam. Ainda hoje, tantos anos passados, me queima os olhos aquele espectáculo do Amásio, montado no cavalo e o Esquerdo a mulher e a ranchada de filhos, de joelhos descalço e dobrados,  a erguerem suas longas mãos de trabalho, rogando os restos de dignidade, em nome de uns restos do direito â sobrevivência e as chibatadas que desciam do alto do cavalo sobre o  seu corpo andrajoso e mártir. E nenhum homem se mexeu, seguido, evitando olhar e seguindo sua vida: - “Desejo um Santo dia, meu Senhor….”

“Não aceitarei pois tal herança, minha madrinha, - continuou, Manuel Maria com veemência, dirigindo-se diretamente à Camillinha que, agora procurava a todo o transe, dominar o discurso do jovem, mas ele prosseguia cego de raiva. como se fala-se consigo mesmo. - nem a herança, nem qualquer riqueza acumulada pelo trabalho de escravatura, a que foram sujeitos muitos dos trabalhadores dos domínios da Casa Grande...”

Ouvindo, no corredor, o tom elevado das palavras de Manuel Maria e a fidalga a procurar contê-lo, a Violante entrou no escritório e, perplexa com a gritaria, segurou Manuel Maria, olhou de frente e, sacudindo-o pelos ombros, disse com voz firme: -“ Que é isso, menino? Que gritaria é esta? Achas que isto são termos de te dirigires à madrinha? Vamos lá acabar com a gritaria e falar como pessoas crescidas!  que se passa?...”

Foi a fidalga quem respondeu. Manuel Maria, ainda perturbado pelo destempero das suas palavras. esteve -vai não vai” para responder, com palavras violentas, a sua própria mãe Violante (“meta-se na sua vida e deixe a vida dos outros, que a sua tem muito para contar”...) mas engoliu a tempo  os subentendidos e a agressividade e foi a Camillinha quem respondeu: “o senhor teu filho nega-se aceitar a perfilhação e a herança do Frederico Amásio!...”

- “O senhor meu filho já tem idade para ter juízo - proclama Violante- e não confundir alhos com bugalhos...” E acrescentou com uma ponta de ironia é percorrer-lhe os lábios: -“não queres ser parecido com o agora defunto, senhor da Casa Grande, mas para o bem e para o mal ele é teu pai e, se algum de nós tivesse dúvidas (e não te esqueças que fui eu quem te trouxe ao mundo) olha que bastaria ouvir as tuas palavras arrogantes e a tua soberba para ficarmos a saber donde provêm tais qualidades...” E continuou, agora mais grave: “se tu queres ou não ficar com a herança é problema teu, fui sempre pobre e pobre hei-de morrer, mas não esqueças os teus deveres para com aqueles que te criaram; é mesquinhez tua e uma grande vaidade  que brada aos céus rejeitares aquilo que Deus, em Sua Divina Sabedoria te co

Manuel Maria embatucou! A fidalga, embora um tanto chocada com as palavras chãs e rudes da Violante (“tão desastrada, benza Deus!---”) e com sua falta de tento e de senso, pois não foi capaz de respeitar a ignomínia e a afronta recebidas de Federico Amásio, logo na noite de núpcias da fidalga, mas fez-se desentendida e. dando por terminada a conversa “Manuel Maria terá muito tempo para pensar neste assunto. Agora, basta ver os seus olhos a arder para sabermos que o seu pensamento está em Lisboa aonde a revolução triunfadora o espera. E tens razão meu filho!... São os grandes momentos da história pátria que se definem os grandes homens!.. Vai pois, para Lisboa e faz o que tens que fazer e a tua consciência te ditar. Voltaremos à herança quando for caso disso e o terreno estiver preparado!... E, com mal disfarçado despeito, quando não uma pontinha de sarcasmo, “aliás se a revolução for aquilo que eu penso que o será, que importância tem herança de um fidalgote desbragado?..

E, a concluir, “teremos, porém,  em boa conta a tua opinião  procurarei sarar uma das tuas dores de menino, chamando o Zé Esquerdo e a família, que nos ajudarão, a mim e a tua mãe a administrar esta Casa!...

E o “escrevente” que não é um homem justo, nem “sage” , mas que nesta prosa bárbara, que se quer literária, assume as  dores e favores do “ilustre” escritor Manuel Maria, que há-de ser, interroga-se não para saber “como se escreve um romance”,  questão insanável que tanto o atormentou, mas pelo contrário, interroga-se agora, por sua vez, o escrevente “como termina um romance e se escreve a palavra Fim”. Soubesse ele e todos ficaríam felizes! Os leitores, (se leitores houver) sem o peso de mais umas páginas e mais uns bocejos! E o “escrevente” a passar carta de alforria ao “escritor” Manuel Maria, e a manter férias de letras e partir para onde vento o levasse. Constata, porém, o escrevente que duas belas mulheres, noutro tempo literário, lá trás, esperam de ManuelMaria, um sinal para os três construírem um final "comme il faut - apoteótico e misterioso, qual  Carta Que Nunca Te Escr eer ei…


Manuel Veiga

2 comentários:

Olinda Melo disse...

Grande Manuel Maria, gostei da sua tirada, cheio de razão. Como não? É claro que a Violante teve de o "repreender".
A Camilinha mais contemporizadora, sabe que não é com exigências que vai lá. Começa por dar ao seu rico menino um tempo para reflectir. E também vai fazer algo que o há-de amolecer:Dar a mão ao Canhoto e à sua rachada de filhos. É de justiça!
Caro Escrevente, pode crer que não queremos pressioná-lo. O "Final" virá quando tiver de ser.
Grande abraço.
Olinda

Olinda Melo disse...

Corrigindo:
Onde está "rachada", deve ler-se:
"ranchada".
Sorry.

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