Como se constrói um homem? José
Augusto Esquerdino correu como um gamo, longe, cada vez mais longe, correu por
montes e vales, correu longe, cada vez mais longe, de norte para sul, sem
destino à vista e sem saber por onde ir, nem azimute que o guiasse. Corria para
fugir dele próprio, corria para fugir da vergonha sua e a vergonha do seu pai,
vencido e humilhado, submisso e manso, como um cordeiro pascal, com as suas
longas mãos de trabalho estendidas e abertas em direção a Federico Amásio, a pedir perdão,“de joelhos Esquerdo, que perdão se pede de
joelhos”. A soberba do senhor da Casa Grande e aquela
exibição pública de poder, aquelas palavras atiradas com desprezo sobre um
homem vencido, doem como ferro em brasa e ficam gravadas no espírito de adolescente, por toda a vida. Por isso, fugia, José Augusto Esquerdino fugia para nunca mais
voltar, fugia contra a infâmia fugia contra o ódio acumulado, fugia contra a
vergonha infringida por seu pai, seu herói e seu mestre e sua vergonha que se
colava na pele e que sacudia como peçonha. Água alguma pode lavar a honra
perdida de um homem, nem saciar sede de justiça, nem o ódio de um filho quando
assiste à glorificação da prepotência e vê a ignomínia cair sobre a cabeça do
seu próprio pai.
Correu, pois José Augusto Esquerdino
por montes e vales, andou por quaisquer provações, alimentando-se do que a
natureza lhe dava, aqui eu ali caçando numa armadilha um coelho, ou alguma
perdiz com que, por vezes, fazia lauto banquete, ou então quando já não podia resistir
â fome entrava nalgum povoado e a troco de qualquer serviço, aceitava então uma malga de caldo ou um naco de pão e seguia o seu caminho, sem parar nunca, pois
jurara a si próprio que daí em diante, nunca nele alguém mandaria e
fixar-se em algum lugar, seria o primeiro passo para a sua capitulação.
Um homem, porém, pode passar dias e
meses fugindo de si ou dos outros, mas não pode passar a vida inteira fugindo. De
tal forma, que José Augusto Esquerdino começava, não a sentir saudades, porém,
a compreender que fugir por montes e vales, sem saber para onde ir, fazia dele
não um homem, mas um bicho ou um animal selvagem. É que um homem quando pensa,
tira por vezes conclusões inesperadas. Teve tempo, assim, José Augusto Esquerdino, a percorrer montes e vales, para pensar a sua solidão e perceber que correr sem
destino era uma forma de desistência da vida! Mas para onde iria? Não tinha
parente a quem recorrer, que lhe pudesse dar a mão e compreender o drama que
arrastava consigo. E sentia-se descorçoado com rumo das conclusões.
O curso das coisas e dos acontecimentos, porém, revela-se, por vezes e por caminhos inesperados e a solução que buscamos encontra-se tantas vezes, ali, à mão de semear, sem disso darmos conta. Bastas vezes o leve adejar do acaso, é o bastante para mudar destino de cada um. Estava pois o jovem José Augusto nas suas lucubrações filosóficas, quando ao virar de uma curva do caminho, que desembocava numa encosta bastante íngreme, se deu conta, de um homem alguns passos adiante, apeado, que levava a bicicleta pela mão. o que o jovem achou um pouco descabido, já que, apesar de tudo, a inclinação da encosta não era nada do outro mundo, isto é, nada que não pudesse ser vencido em cima da bicicleta.
O jovem José Augusto apressou o
passo, procurando alcançar o homem da bicicleta, não que lhe importasse muito
se o homem ia em cima da bicicleta ou se a carregava, mas a verdade é que um
homem, se não pode fugir toda a vida, muito menos, pode viver sem falar e ouvir
no som da sua voz, em confronto ou em comunhão com a fala de outros homens. Assim,
José Augusto apressou o passo e, quando alcançou o homem da bicicleta, depois
de uma breve saudação, mais para meter conversa do que qualquer outra razão,
atirou lhe: “então
vossemecê, em vez de ir a cavalo, leva o burro pela mão?...” O homem da bicicleta fixou o rapaz uns segundos com
olhar penetrante, que impressionou o jovem e o deixou pouco â vontade, com
aquele olhar de por um homem tremer, como se estivesse a ler-lhe a alma e
adivinhar-lhe os segredos mais íntimos: “e
tu, meu rapaz o que levas nas mãos? certamente o mesmo que tens nas algibeiras
– isto é, nada!...” E, prosseguiu o homem
da bicicleta sem esperar pela resposta:
“atreveste a negar? ora mostra cá essas algibeiras!...” O rapaz sentia-se como um passarinho indefeso, perante a sedução de uma serpente antes de tragar a presam, ele José Augusto a cair na esparrela
com a lábia do desconhecido e, sem hesitar um segundo sequer, virou o forro dos bolsos e falou, exorcizando
a sua perturbação “como é
que vossemecê adivinhou que trazia os bolsos vazios e a barriga a dar horas? querem
ver que me apareceu um bruxo atravessado no meu caminho” “E não o digas a
brincar, meu rapaz! sei coisas que nem te passam pela cabeça – replicou o homem da bicicleta – e quanto a tua fome basta olhar o teu
corpo escanzelado, como se fosses um cão vadio”...
O rapaz embatucou! Esteve quase para reagir com acrimónia às palavras do homem da bicicleta, pois ninguém gosta de ser comparado a um cão e, muito menos, a um cão vadio, mas calou-se, forçado por uma voz interior que o empurrava, pois não queria ser ele a estragar o fio da conversa, nem a companhia, que apesar do tom um pouco agressivo, estavam a tornarem-se agradáveis.
Permaneceram, pois, assim em silêncio, por longos minutos, o
rapaz e o homem da bicicleta, espiando-se um ao outro e foi um rapaz quem
retomou a conversa:-“Para onde
é que vossemecê vai assim com a bicicleta pela mão? Não era melhor montar nela
e chegaria mais depressa ao seu destino, seja ele qual for? E o homem da bicicleta, no mesmo tom galhofeiro: “estás a invejar o transporte ou pretendes
saber para onde vou?... mas olha que a bicicleta tem um uma roda furada e com
ela neste estado levarei dia e dias a chegar Lisboa. Sabes, porventura, remedar um furo a
roda da bicicleta?
“Não sei
não, senhor – respondeu rapaz. E num
tom de voz que mal se ouvia, como que envergonhado da sua ignorância– e nem sequer sei onde fica Lisboa. “E gostavas de conhecer, meu rapaz? Lisboa é
a capital do país...” voltou à carga, sedutor,
o homem da bicicleta. O rapaz encolheu os ombros, bem sabendo que Lisboa não está
ao seu alcance e nos seus planos: “E que
iria eu a fazer para Lisboa? Sim, que faria um cão vadio em Lisboa? – ripostou o rapaz, com uma certa ironia amarga e
uma lágrima de impotência e raiva, a deslizar por seu rosto de adolescente. O
homem da bicicleta apiedou-se do rapaz e para disfarçar a sua própria comoção e
animar o jovem “sabes que
mais, ainda não sei o teu nome, será que tens nome? Então diz-me “como te
chamas” ? acrescentou o homem da bicicleta, com um sorriso franco
e acolhedor. “O meu
nome José Augusto e não lhe digo meu apelido porque eu herdei-o do meu pai de quem
rasguei todos os laços, pois ele é um
froixo que ajoelhou, pedindo perdão ao seu patrão e nenhum homem deve vergar-se
perante outro homem”. E o homem da bicicleta
surpreendido com inesperada confissão, “vês,
deste-me teu nome e falaste-me a tua tua vida – agora somos amigos,
não te parece? eu tenho
vários nomes, mas para ti serei Álvaro, Álvaro apenas. Agora vamos comer uma bucha,
que vem ali naquele bornal e se verá que faremos em seguida”.
O rapaz seguia com atenção todos os
gestos do homem da bicicleta, não apenas por curiosidade, mas sobretudo em
virtude da forte personalidade que dele emanava, um magnetismo tão poderoso que até parecia ter-se apossado da
sua alma do rapaz. Como um sismógrafo o rapaz anotava, sem dar por conta, todos os
registos dos humores do homem da bicicleta, que naquele momento, parecia, pela
expressão do seu rosto, denotar alguns sinais de preocupação e, por isso, não
se conteve “está
chateado comigo? se calhar abusei da sua
se solidariedade e comi como um alarve” . E o
homem da bicicleta “que nada
rapaz! são pensamentos meus, que mesmo que te pudesse falar deles, a conversa
levar-nos-ia muito longe e seria inútil para ti.” E acrescentou com um sorriso rasgado, “alea jacta est ” – disse o homem da bicicleta numa língua de trapos e
continuou. ignorando o rapaz, falando apenas consigo próprio: "o risco não é grande! E o rapaz mostra ter fibra! Com o acompanhamento certo é bem possível “fazer-se um… Homem!” E, então, declara, categórico: “vais comigo para
Lisboa, está decidido... não é isso que tu queres?”...
A necessidade apura o engenho,
costuma dizer-se. Sem dinheiro, nem quaisquer outros meios, de que se
pudessem valer, o rapaz e o homem da homem bicicleta viajaram como “clandestinos”,
a partir da Estação Velha, em Coimbra. Um comprido comboio de mercadorias de vagões
abertos, calhou mesmo para, sem grande dificuldade, se instalarem na última
carruagem e ficarem abrigados com o oleado que cobria os sacos de cimento, que a
carruagem transportava.
Apearam-se em Braço de Prata, às
portas de Lisboa. O homem da bicicleta disse então para o companheiro “dá cá um abraço!...aqui separáramo-nos! E
não ficas com essa cara de enterro, pois em breve alguém te virá buscar”. E, sem mais delongas, o homem a bicicleta sumiram-se
por entre uns canaviais e a escuridão da noite...
José Augusto ficou sozinho. Ao longe,
as luzes da cidade brilhavam como pirilampos na noite escura em Terras do Demo para onde seu espírito fugia, assim abandonado e
perdido E quase lamentou a sua partida...
Porém, de repente, sente alguém a bater-lhe no ombro “chamas-te José Augusto, não é verdade”?... Vamos sair daqui, imediatamente... – ” E um jovem, praticamente a sua idade, meteu o seu braço no dele e prosseguiu como se falasse sozinho “amanhã tratamos de te arranjar um emprego; hoje estás por ninha conta, amanhã trataremos de te arranjar empreso, José Augusto acabara de passar o seu Rubicão!
Manuel Veiga
3 comentários:
Olá, Manuel Veiga
Gostei muito de conhecer que destino levou José Augusto Esquerdino, quando fugiu das "Terras do Demo", para longe da humilhação sofrida à vista do seu pai ajoelhado aos pés do Senhor da Casa Grande...
Aguardo desenvolvimento. Sem pressão :)
Abraço
Olinda
Como a Olinda, também eu, caro Amigo, aguardo " desenvolvimento " , pois sempre gostei " desta série rie " , mas...." Sem pressão " Tudo de bom, Manuel, eecialmente no que à saúde diz respeito. Beijinhos
Emilia
Boa tarde Manuel,
O que eu tenho andado a perder!
Gostei imenso do desenrolar desta bela história com personagens fantásticas.
Vou ficar a aguardar pelo próximo capítulo.
Um beijinho.
Ailime
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