José Augusto Esquerdino era um homem socialmente
retraído e tímido, já se disse, que tinhJa dificuldade em se mover fora do seu
habitat natural. Era como algumas plantas, que estiolam, quando transplantadas
para um ambiente que não é o seu. Do mesmo modo, José Augusto, cujas vivências
estavam fortemente impregnadas da sua militância política. Fora delas, José Augusto
“não existia”, isto é, a sua vida fora totalmente devotada à
luta antifascista e, por isso,
nunca teve nem tempo nem oportunidade para frequentar escolas, de tal forma
que, do ponto de vista oficial era formalmente um analfabeto, como acontecia
com a maioria da população portuguesa que mal sabia ler, escrever e contar.
José Augusto, porém, tecera laços fecundos comos amigos e companheiros de luta,
com os quais aprendeu a “ciência da vida”
e da sobrevivência e que o protegiam e estimulavam a uma formação integral embora,
por força das circunstâncias, quer dizer, por força da constante vigilância
policial, José Augusto Esquerdino fosse obrigado a deixar para trás aspectos
particulares da sua formação e valorização. cultural que tanto o seduziam e
poderiam ser de grande utilidade na sua luta. Mas que fazer? A a vida lá tem as
suas razões e um revolucionário, digno desse nome, coloca acima de tudo a luta
por um mundo mais livre e justo, ainda que com prejuízo seus interesses
pessoais, incluindo a própria vida.
Conhecida que era, a firmeza do seu
carácter, nada mais natural que os seus companheiros propusessem José Augusto para
Presidente de um grande Município da área metropolitana, pois que o domínio das
instituições e do poder de Estado são determinantes quanto ao destino da revolução
e, neste sentido, houve a preocupação de colocar nas freguesias e nos municípios
candidatos de grande firmeza política, pois se tratava, de alguma forma, de
instituir um novo poder local, que desse a resposta às exigências da
participação popular organizada e às massas populares e seus desígnios de luta
política.
Tratava-se,
de facto, de um “poder novo” que “tirava
o fascismo da cabeça das pessoas”, e aprofundava o conteúdo e a vontade de
democracia, pois que eram concedidos aos cidadãos, a possibilidade de
participarem na formação das decisões que lhes diziam respeito, o que aprofundava a democracia formal e alterava a relação entre os cidadãos e os
órgãos e as instituições do Estado, que até então ditavam a sua vontade com a
atitude autoritária do “quero, posso e mando”.
Como
se compreende, a exemplo de José Augusto Esquerdino, a maioria dos novos
responsáveis pelas autarquias, não fazia a mínima ideia do que era o
funcionamento administrativo das câmaras municipais, cujos funcionários, como se disse, integravam
um quadro de pessoal do Ministério do Interior, que os nomeava e, em consequência,
obedeciam, em primeiro lugar, ao governo, o que transformava as autarquias em
meras extensões do governo, ou dito de outro modo, as autarquias eram “os
olhos e ouvidos”, do governo, a nível local, com o consequente papel no
aparelho repressivo do regime.
Este
conflito latente com o novo “poder local” revelava-se deveras frustrante para
os eleitos locais, pois estes, desejosos de mostrarem trabalho e serem úteis ao
novo Portugal, esbarravam em muitos casos com o boicote dos funcionários
municipais sobre os quais, aliás, praticamente, não detinham poder efectivo,
como ficou dito. Esta dupla hierarquia respeitante aos funcionários municipais tinha
particular relevância, por exemplo, em
matéria de urbanismo, com os pereceres dos técnicos enfeudados aos interesses
financeiros locais e as decisões políticas que se impunham, face ao interesse
geral da comunidade política Mas, enfim, nada de mais fluido do que o
proclamado “interesse geral” no decurso de uma revolução, em que cada grupo ou
classe social pretende fazer valer os seus interesses, sobrepondo-os aos interesses
dos restantes grupos sociais e projetando os respetivos interesses particulares,
como interesse geral da coletividade.
Não foi
fácil pois, a vida dos “cabouqueiros” do poder local democrático, sobretudo se tivermos
em consideração que o país acabara de sair de uma ditadura de mais quarenta anos
em que o autoritarismo e a prepotência constituíam a prática comum da relação dos cidadãos
com o estado e as instituições públicas.
“Seja
como for, a democratização do país foi obra de gigantes!”- assim sentenciou o arquiteto Manuel Maria em diálogo consigo próprio, ou mais propriamente, na sua fastidiosa litania sobre as “dores do parto” do poder local democrático e, num salto de imaginação aparentemente
despropositado, mergulhou na velha obsessão, que o reclama a cada instante e na
pergunta que o acicata, que “faria
ali a Cléo”, desde que descobriu a sua velha amiga, emoldurada num par de jeans, que lhe embelezavam as formas, metendo os pés pelas mãos, falando âs massas,
e conclui, neste tempo da escrita, que fazia mais sentido outra pergunta, ou
seja, “como teria trepado até ali a Cléo”, tão distantes eram os universos em que brilhavam as estrelas maiores
desta escrita redonda e mal alinhavada, pois “o
que fazia ali Cléo” deixara de ter o encanto de um segredo, para
decair na banalidade da assessoria
que a Cléo se esforçava por prestar a José Augusto Esquerdino, designado e
sufragado Presidente de um grande município da área metropolitana de Lisboa, que
acabado de tomar posse, se sentia espartilhado e rodeado de adversários, que, nas suas singularidades, tinha por certo que estava rodeado de uma seita
reaccionária que outra coisa não desejava se não vê-lo dali para fora e, neste
contexto, o que fazia ali Cléo era tentar protegê-lo de si mesmo, isto é, interpor-se entre a solidão
do poder do Presidente e a avalanche de pessoas e papéis que se acumulavam na
antecâmara do seu suposto secretariado, tarefa hercúlea até mesmo para uma
jovem, que depois de ganhar a certeza de que
prestava na cama, estava totalmente disponível e não existia tarefa
que a assustasse.
Tão enriquecedora metamorfose, qual larva a assumir-se
borboleta a Manuel Maria o estava a dever que, em breve, apesentaria a amável factura...
Manuel Veiga
3 comentários:
José Augusto Esquerdino um homem que se fez sozinho, com a sua garra e vontade de vencer. Também com a ajuda dos amigos que foram encaminhando os seus passos nesses tempos da Revolução.
Vejo que o Manuel Maria apesar de surpreso ao ver a Cloé, resolveu dar-lhe espaço para ela mostrar valor nessa hora de tantas decisões.
Texto excelente, Manuel Veiga.
Abraço
Olinda
Rebaptizei a "Cléo"...
Peço desculpas.
Abraço
Prosa de fino quilate, onde o talento do escritor se mostra à evidência.
Ao ponto de não perceber como é que nenhum dos comentadores que mostram livros nas TV's ainda o não fez acerca da sua obra. Que é notável, tanto na prosa como na poesia.
Um abraço e boa semana.
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