Manuel
Maria saiu edifício e foi a pé, uma escassa meia hora, até ao colégio, que
continuava a habitar, por tolerância da Direção da Escola e o empenho do padre
operário, que o iniciou na política e lhe formou o carácter. Andar sozinho a
calcorrear as ruas era hábito antigo, que entre outras vantagens lhe permitia
manter os seus solilóquios e seus diálogos íntimos e assentar ideias, quando algo
o preocupava. Assim, Manuel Maria, naquele fim de tarde, depois de ter deixado
José Augusto a assinar os últimos papéis, lançou os pés ao caminho, num percurso
que era uma rotina e, mentalmente, vêm a saltitar as cenas e palavras da
reunião, como se tratasse de um filme passado em playback, e cada
palavra proferida e cada gesto fossem de novo vividos e passados agora pelo
crivo ponderação crítica. E, neste contexto, Manuel Maria descobre então que o
tratamento condescendente e um pouco abusivo de José Augusto, substituindo o
seu nome próprio, Manuel Maria, pelo vocativo “Rapaz” o incomodava um tanto.
Claro que não havia intenção ofensiva nessa liberdade de José Augusto, pelo
menos assim o acreditava, mas, seja como
for, o vocativo remetia
para alguma sobranceria de José Augusto e para a irresponsabilidade de “rapaz”,
como se Manuel Maria fosse um rapazola qualquer. que nada levava a sério.
E.
já se sabe, quando a corrente de consciência toma desenfreada o domínio do
pensamento nunca se sabe aonde nos leva, de tal jeito que a alegada sobranceria
de José Augusto, usando o vocativo
“rapaz” em lugar do seu nome próprio, trouxe por arrastamento outras memórias
sobre assuntos que denunciavam a incompreensível atitude de José Augusto, fazendo
gala em criticar, e classificar como pueris ou idealistas, deslocados,
portanto, face à urgência revolucionária em que o trabalho o autárquico se
desenvolvia. O caso mais saliente era o seu projeto de de uma "Arquitetura para o Povo" em que genuinamente
acreditava e que José Augusto, Presidente da Comissão Administrativa de um
grande município da área metropolitana de Lisboa, não perdia a oportunidade para
o desmerecer, quando não mesmo para o ridicularizar. E, quando tal acontecia, Manuel
Maria sentia uma amargura profunda e solitária, não tanto pela discordância,
pois, em verdade, foi em nome o direito de cada um pensar conforme o seu entendimento
que a revolução se fez, mas pelo acinte que sentia nas palavras José Augusto.
quando ao seu trabalho se referia.
E
se tal situação era ou seria difícil de suportar, vinda de qualquer outra pessoa,
o que o obrigaria a reagir de imediato e
defender o seu trabalho, quando se tratava de José Augusto apoderava-se dele
uma inibição que lhe prendia as palavras no palato e na língua e, contrariado,
por lhe dar razão, (de que depois se arrependia) e acabava por fazer aquilo que
considerava ser certo, criando assim situações de ambiguidade, que não
correspondiam ao seu caráter e, por isso, eram incompreensíveis a si
próprio, a sua tibieza e, por outro lado, o ascendente que José Augusto exercia sobre ele provocava nele uma atitude de subserviência enganadora, de que a última reunião fora mais um expressivo e infeliz
exemplo.
Concluía, portanto, Manuel Maria que alguma coisa não batia certo ou, então, lhe escapava o sentido
profundo e tudo aquilo que fazia confusão, pois que José Augusto era pessoa considerada
cordata, a sua colaboração com o município transparente e enorme a admiração de Manuel Maria, pelo seu passado antifascista, cujos ecos dos
seus feitos eram, num tempo de cerejas e borbulhas e “revoluções de papel”, avidamente
comentados por um grupinho de jovens universitários com pretensões revolucionárias
que tinham em José Augusto como um herói
e, agora, no tempo presente desta
escrita, que se diz literária, Manuel
Maria, tendo apenas como cenário o soar solitário de seus passos na calçada, que
em seu ouvido e sua imaginação se
apresentavam transfigurados em gritos da mltidão e no tropel dos cavalos e a polícia
de choque, de chanfalho em punho, vergastando quem apanhasse à mão,
trabalhadores, estudantes, caixeiros ou turistas e Manuel Maria correndo pela
rua do Carmo acima, a sangrar da cabeça e, por entre gritos s, sentiu alguém a
puxa-lo, providencialmente, para dentro de um tapume de uma obra que ali se
fazia e umas mãos grandes a arrastá-lo
para dentro do edifício, mãos tão enormes que chegavam da Terra ao Céu e a voz
de José Augusto (pois era dele que se tratava), a indicar o caminho da fuga e
Manuel Maria a pretender o nome de seu
salvador e o homem de grandes mãos e iam da Terra aos Céus, “Qual
nome, qual nada! Saberás é um dia, se tiver que ser ... Agora corre… Foge!…
.
E,
Manuel Maria a recuar a infância e a surgir entre duas mulheres que o
amavam como se filho de ambas fora e um homem andrajoso, rodeado de mulher e
filhos, tão andrajosos como o pai, a erguer as mãos ao céu, mãos tão grandes
como nunca outras vira e o homem andrajoso ajoelhado perante outro homem, que,
a cavalo, do alto da sua soberba, a ditar “de joelhos, Esquerdo, de joelhos
que perdão pede- pede-se de joelhos!...” e o homem lavado em lágrimas e a
elevar as suas enormes mãos a céu, e a pedir perdão, “mas pedir perdão de quê,
meu Deus “? … se o homem andrajoso apenas desejava trabalho e pão para os
filhos! E, então, em sua alucinada
evocação, Manuel Maria comove-se com o jovem andrajoso, o filho mais velho do
pai andrajoso a afastar-se do grupo e engolindo toda a sua raiva fixando o pai,
seu herói e seu mito, de joelhos, vergado e humilhado, sai correndo a soltar
maldições ”maldito sejas Esquerdo, nunca te perdoarei esta vergonha!. Nunca
mais me verás!...Fujo de ti e desta vergonha, nunca mais voltarei!..”. E dali partiu a correr, longe cada vez mais
longe, dia e noite. por montes e vales, longe cada vez mais longe, até as
lágrimas secarem e o seu coração endurecer… E se fez homem, com outros homens,
seus camaradas, no combate político, passando fome ou ganhando o pão de cada
dia. E, ali estavam os dois Manuel
Maria e José Augusto. Ele, José Augusto, um pária que renegou o Pai, numa afirmação
de dignidade, pois que nenhum homem deve ajoelhar perante outro homem e
agora, neste tempo narrado, Presidente da Comissão Administrativa de um grande
município da área metropolitana de Lisboa e Manuel Maria também ele um pária, sem nome, porém, amado por duas
Mulheres como se ambas sua mãe foram. Ali estavam pois os dois, Manuel Maria e
José Augusto, jogando o jogo da vida, tão próximos e tão distantes Manuel Maria
e a sua profunda admiração por José Augusto, pela sua vida de combate
permanente contra a opressão fascista e contra a ignorância e a miséria, admiração
tão forte que raiava a idolatria e, no entanto, parece não ser compreendido
por José Augusto nessa devoção de amizade fraterna, face às suas incompreensíveis manifestações de
sobraçaria e o desmerecimento do seu
trabalho, nomeadamente, do seu projecto de “Uma Arquitectura para o Povo!”, que não perdia oportunidade de
ridicularizar. Mas as as coisas são o que e, por ele, não estava no seu feitio, fazer ondas fundadas em presunções e
não em certezas, que em rigor não poderia evocar. Mas que a ferida doía, lá isso
doía… tanto quanto alguém sente o esboroar de um mito.
E
vinha agora a Cléo! Aquela coisa de partilharem ambos o amor da Cléo, por moderna
e ideologicamente avançada que fosse, na realidade soava-lhe a falso. Aliás, a
Cléo era um dos vértices do programa, que José Augusto propunha. Tinha, portanto, uma palavra a dizer. Era urgente,
portanto esclarecer este assunto. Veria
esta questão com ela, e procuraria as circunstâncias do seu conhecimento com José Augusto,
em Paris.
Manuel Veiga
1 comentário:
Apreciei bastante este texto, essas reflexões de Manuel Maria quanto à ascendência que José Augusto parece ter em relação a ele. Penso que é assunto que deveria ser esclarecido entre os dois. As suas raízes são quase as mesmas.Pode ser que no intimo de José Augusto haja alguma coisa mal resolvida... Deixo isso ao cuidado do Escrevente. Além disso, há essa questão da Cléo que não me convence. É claro que ela tem uma palavra a dizer.
E isto para dizer que estou a gostar muito de acompanhar esta narrativa.
Um abraço, Manuel Veiga.
Olinda
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