Que razão inscrita na ordem das coisas pode
levar a Natureza a dotar a mão esquerda de um homem das aptidões e valências
que outros homens têm na mão direita é mistério que estas mal cerzidas palavras,
sem sentido de medida, a assumirem-se, com vocação literária, jamais buscarão
entender, sendo porém certo que a dominância da esquerda no corpo dos
indivíduos é algo estranho, uma espécie de enfermidade congénita que corrói
como marca física e transporta tão grande importância simbólica, que pode
efectivamente determinar, muitas vezes, o próprio carácter dos homens e a
predestinação de suas vidas e, não raro, em tempos de obscuridade e opressão,
constituir-se como ferrete de ignomínia e de exclusão, de tal maneira que o
sujeito de tal enfermidade, ou tendência, ou hábito, ou malformação, ou jeito
do corpo, ou vício endémico do carácter será conhecido, não por seu nome
próprio, ainda que ungido em sagrada Pia
Baptismal, com toda a corte de anjos celestes, que assim sempre acontece
quando uma criancinha de meses é solenemente ungida com os sagrados óleos, mas
pela alcunha de Canhoto, sinónimo de canhestro, marca gritante de desajeitado
e sem préstimo, enfim, atávico sinal de exclusão social.
Assim era naquele tempo de brumas, quando o Zé Canhoto, ali chegou, àquela aldeia
das Terras do Demo, vindo não se sabe
bem de onde, mas que alguns, que por mais vivaços se tinham, diziam ser
originário para lá dos montes, que daquela margem esquerda se avistavam, aonde
muito raramente alguém ia e, donde uma vez por outra, alguém escassamente
chegava, bem se sabendo que a vida se faz a sul e não a norte ou não fossem as águas
frondosas do Douro fronteira e, depois delas, as arribas do rio Sabor, que, no
Pocinho, entra sorrateiro em águas mais poderosas e, ultrapassadas as águas da
foz, horas e horas corridas, por montes e vales, descendo e subindo, subindo e
descendo até a vista poder espraiar-se pelo vale da Vilariça ou perder-se,
novamente, pelos sinuosos caminhos, enfeitados de amendoeiras e oliveiras e
hortas e pomares de Moncorvo e Vila Flor ou, mais para norte, para os úberes
vales de Alfândega da Fé, Mirandela ou Macedo de Cavaleiros. Mas para chegar
até lá, quem se arrisca sem razão funda? E quem, em seu juízo, mete pés a
caminho, em direcção ao norte escarpado, quando os rios correm não para norte
mas vão todos em direcção ao mar? Nada, pois, tudo bem visto e ponderado, nada
de estranhar que os homens não subam em direcção ao norte e, pelo contrário,
melhor se compreende que um desconhecido, que com nenhum outro nome ou graça se
dá ao conhecimento que não seja o monossilábico som de Zé, como se as tumultuosas águas do rio Douro e os deuses que as
governam, como castigo pelo atrevimento da passagem a nado, de noite, pois seus
passos, não se compaginavam com passagem à luz do dia na pachorrenta barcaça e cuja
ousadia, que quase lhe levava o corpo, lhe tivessem arrebatado, em banho sacral
invertido, sobrenome ou apelidos, nada pois mais normal para quem do
mundo conhece um mínimo de seus caprichos, que um sujeito de tudo desprovido
até de nome, obedecesse ao ritmo e à direcção das águas e ali arribasse, como
as trovoadas, ou seja, inesperadamente, deixando marcas, como se verá, em tempo
literário a seu tempo narrado, proveniente de terras além-Douro, no norte do País, ninguém ali sabendo ao certo
quem era, nem ao que viera, se por rixa e fugido à justiça, se por mal de
amores, ou mal de fome, sendo verdade, que naquele tempos de negritude e
miséria, a fome era apenas outro nome para indigência, que nada mudaria com o
lugar escolhido para viver, como piolho não muda de poiso em camisa suja.
Seja como for, a verdade é que o Zé ali estava, nem sequer Zé Ninguém que outra coisa não era, nem
sequer ainda Zé Canhoto que em breve
seria, fazendo-se jus à sua mão esquerda que na morfologia do corpo e no jogo
de forças que invisíveis se jogam no cérbero e marcam o carácter e predestinam
o curso da vida, ali estava pois o Zé,
provindo de além-Douro, das quebradas
do alto Sabor ou do alto Tua (vá lá saber-se ao certo!) a bater à porta da Casa Grande, a pedir guarida e trabalho,
naquela aldeia nas Terras do Demo,
cujo termo soalheiro descaía em socalcos pela margem esquerda do Douro
vinhateiro.
Apressemos, porém, os tempos e abreviemos os nós
desta estória do Zé Canhoto, que ainda não era e, em breve seria, pois este nosso
tempo tem pressa e urgência em colher e a rosa-dos-ventos, em que a vida se
joga e que em todas as direcções aponta, é, por enquanto, auspiciosa e nos
concede uma suave brisa a enfunar as velas, empurrando o mar desta narrativa,
que sem rebuço se quer literária, verdade seja que sem golpe de asa ou centelha
criativa – suprema ironia – pois por maior que seja a presunção do escrevente e o seu zelo, olhando em
redor, não se vislumbra que Camilo se passei por perto, disposto a ditar sua
prosa encantatória e voraz, a erguer o Zé
Canhoto como um dos seus heróis românticos ou, se não herói, pelo menos
personagem consistente que lhe garanta lugar marcado na galeria da eternidade,
nem sequer Aquilino, de espingarda ao ombro e em sua saga político-literária, a
lançar mão da vida canhota do Zé, que aquelas paragens chegou, vindo sabe-se
lá donde, passando portentosas tormentas e, com ela, com a vida do Zé, entretecer sua prosa apaladada e bravia,
moldada em sábio e vero linguajar, numa réplica hodierna do belo romance Terras do Demo, ou - quem sabe? - talvez
uma nova versão de “Quando Os Lobos
Uivam”, pois, se os baldios são ardidos e desertos, não faltam, porém lobos,
a descer aos povoados (que restam).
Mas apressemos os passos, que nestas linhas
cruzadas de contar, importa que as raízes não sequem o tronco e os ramos e bem
sabemos que Manuel Maria é o centro, onde os nós da narrativa se tecem ou se
deslassam e, quando outros laços e nós da escrita se buscam, são ainda seus
passos e seus gestos que se perseguem, de tal forma que, sendo certo que
deixamos o nosso herói (a contragosto), no auge da Revolução de Abril, o novel
arquitecto Manuel Maria, a acreditar genuinamente numa Arquitectura para o Povo, subindo a escadaria dos Paços do
Concelho, de um Município da Área Metropolitana de Lisboa, a colocar-se ao
serviço da Revolução, indo ao encontro de José Augusto Esquerdino, recém-eleito
Presidente da Comissão Administrativa, em amplo e participado plenário da
população, é exigência de entendimento e da ordem das coisas narradas que se
persigam os fios desatados para que se possam desvendar finalmente os laços e
veios e, para além deles e do acaso de suas vidas, que poderão unir homens tão
diversos, em diversas pontas do tempo, como sejam Zé Canhoto, José Augusto Esquerdino e Manuel Maria e que fatais razões
do destino ou determinação da escrita poderão levar a que estes três homens vão
entroncar, como em águas matriciais, naquele
local ignorado, algures em Terras do
Demo, na margem esquerda do Douro, cujo termo solarengo descai em socalcos
para as frondosas águas do rio.
(...)
Manuel Veiga