domingo, março 31, 2019

GRANÍTICA ESPERANÇA


Colapsam as palavras e despenham-se na voragem
Das paisagens geladas. Lonjuras que apenas os ventos
Ousam. Pressente-se o grito perdido das fragas
Em simulacro de dor.

Vã a tentativa para além do azul coalhado
E das farripas de bruma que incendeiam os vales
Como bocas sinuosas de dragões em danças guerreiras.
Ou monges brancos em penitências aladas
No milagre de todas as lembranças...

Fantasmagorias soltas debruçadas sobre as casas
Perdidas. Solidão de cabras balindo a urze
E as magras tetas. Ventres que se abrem
Nas encostas. Em presépios de abandono...

Lá no alto a íngreme penitência das dores
E de todas as promessas:
Pagãos que somos!

Guardamos o inesperado. E colhemos
No restrito núcleo de afectos o gosto
Do vinho que bebemos.

E a água que calamos.
E agitação febril dos olhos.
E dos sonhos.

E a granítica esperança tatuada
No coração dos homens.

(poema editado)

Manuel Veiga


sábado, março 30, 2019

TENTANDO UM SONETO...


Sou assim hoje em festa vestido para vós
Na alegria de ler-vos, de quando em vez
Como se viessem todas juntas de viés
As palavras em que partilhamos nossa voz

Não cuido de jardins mas amo as flores
Cada uma em seu perfume diverso
Como letras batidas de qualquer verso
Que todas juntas me perdem de amores

E do poema construído em cada sílaba
Da amizade fugaz (sei lá se p´ra sempre)
Fique a harmonia e a emoção bem quente

E em cada gesto de beleza murmurada
Desse bouquet de amizade em suma
Colha eu rosas e pétalas uma a uma...

(Poema Editado)

Manuel Veiga


terça-feira, março 26, 2019

SOBRE A VOZ DOS POETAS



A voz dos poetas é património
Dos deuses que generosos a concedem
Aqueles que elegem em capricho de vontade.
   
Nem feros corações, nem anjos negros
A podem diminuir ou dela colher
Vingança ou vaidade…

A voz dos poetas arde em chama
De luz branca. E queima como estigma.
E delicada flor se eleva em rebeldia
E amorosa dádiva.

Assim todas as humanas criaturas
Possam compreender seus silêncios
E a humaníssima dor que se acolhe
Em sua pulsão de liberdade.


Manuel Veiga

domingo, março 24, 2019

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 12


Assentemos pois que os portões da Casa Grande se abriram ao forasteiro - entre, quem é!... – com o leve soltar do pesado  batente. Que estava de passagem, a noite vinha fria e pelas alminhas do Purgatório rogava onde pudesse dormir. Nunca na Casa Grande, por dever de caridade e tradição antiga, se recusava abrigo fosse a quem fosse e havia sempre uma malga de caldo, uma manta e mais um lugar nos palheiros para os desgraçados que à porta batessem, fosse pedinte em devota peregrinação, fosse ladrão ou foragido, ou alguém perdido em noites de inverno e nevoeiro e, quem ali se acoitava, estava protegido. Pelo menos provisoriamente protegido.

De facto, naquela velha Casa, cujos pergaminhos se confundiam com os mais gloriosos feitos da História Pátria e em cuja galeria de ilustres titulares constam nomes de Bispos e Generais e Pares do Reino, sendo, porém, verdade que as velhas glórias, com o ruir dos tempos, eram neste tempo narrado, como santos nos altares, que despertavam temor reverencial, mas dos quais, santos e altares, ninguém espera milagres e esta circunstância da usura do tempo, bem a conheciam os diversos ramos da vetusta linhagem, disseminados pela região, fossem eles tios ou tias ou primos mais ou menos afastados, que, em conjunto, ao longo da história, constituíram vasta rede de poder e influência e, agora em processo de preclaríssimo aggiornamento, (“avant la lettre”) a cavalgarem os novos tempos e a refundarem seu prestígio e poder na intimidade com o fascismo caseiro então impante e em fase de consolidação, zelando por assento destacado nos escaninhos da União Nacional, e garantindo presença permanente no Governo, na Assembleia Nacional e nas Corporações, assim recuperando o poder social e o prestigio que a 1ª República, de alguma forma abalara, continuando, nessa arte de adaptação aos tempos, a fazer e a desfazer influências, lugares políticos e empregos na Administração Pública e nos organismos da Lavoura, bem podendo dizer-se, como faziam questão que se soubesse, que “nem uma folha bulia nas árvores, sem autorização da Casa Grande”, pelo que não seria meirinho, guarda-republicano, regedor e até juiz ou presidente câmara que pudessem entrar portas adentro, para perseguir fosse quem fosse.

Aliás, como bem se compreende, nas terras e quintas da Casa Grande, que se estendiam pelo termo de três Concelhos, nunca faltava trabalho. De tal sorte, que muitas vezes, um ou outro daqueles que ali pedia guarida, acabava por ficar, por longos períodos, ocupado na reparação de muros, limpeza de açudes e margens de ribeiros ou na guarda de animais, a troco de protecção e comida, até que o cerco da justiça ou o capricho dos ventos ou a violação das regras da Casa obrigassem o forasteiro a novo poiso. E, neste jogo de conivências e convivências com os desgraçados que à porta batiam, quem ganhava sempre, aliás, com a bênção de Deus, que, como muito bem se sabe, escreve direito por linhas tortas, quem ganhava sempre, dizíamos, na lógica de qualquer processo primitivo de acumulação de riqueza, era a Casa Grande, que granjeava trabalhadores, ao menor custo possível, quer dizer, sem pagar salários.

O senhor da Casa Grande era, neste tempo de cerzir fios e lançar caboucos da escrita, Federico Amásio Jacinto Silvestre Campêlo do Rego, recém-casado com Dona Camila Simone de Bernadette e Malafaya, senhora natural da região de Lafões, onde as serranias da Beira Alta se desdobram, como páginas, no grande livro da natureza e a geografia se abre, depois, em fecundos vales e então se prenunciam as terras baixas de Águeda, onde o rio Vouga se desembaraça, finalmente, do “petit nom” de “vouguinha” para depois, remansoso e pleno, se fundir nas águas do Atlântico e desfazer-se na encantadora Ria de Aveiro.

Quando o , um sujeito de tudo desprovido, até de nome, obedecendo ao ritmo e à direcção das águas, se acolheu debaixo da asa protectora da Casa Grande, ninguém ali sabendo ao certo quem era, nem ao que viera, ecoava ainda o assombro das festas do casamento, com a população a contabilizar o número e o lustre dos convidados ou número de bois e carneiros abatidos e dos almudes de vinho bebidos nos festejos para os quais a população da aldeia, criados de lavoura, e trabalhadores avulsos haviam sido convidados. De tal sorte que, não há fome que não acabe em fartura, o , que Canhoto, em breve, seria, para além da costumeira malga de caldo e dura côdea, caiu-lhe, como sopa no mel, lauta ceia, com os restos do festim que, de travessa e travessa, andavam abandonados, pela cozinha, E, digam-me, poderá um homem morto de fome virar costas, a quem, alguma vez, não apenas lhe matou a fome, mas lhe encheu a barriga? Assim ruminava, o nosso herói ocasional, perspectivando as linhas do futuro e fazendo balanço de seus dias por montes e vales, enquanto com a mão esquerda, segurava nacos de carne que, com sofreguidão, deglutia, famélico, quase sem mastigar. E no íntimo, a desejar oportunidade para falar e poder oferecer aos ilustres e hospitaleiros senhores, seus préstimos que não seriam grandes, mas seu corpo forte e jovem nunca temeu trabalho por muito pesado que fosse.

Não passou despercebida ao ilustre titular da Casa Grande, nem a voracidade, nem a queda para uso dominante da mão esquerda, nem o porte do forasteiro, nem a harmoniosa compleição física, cuja elegância era digna do homem de Vitrúvio, onde apenas o tamanho das mãos destoava, verdadeiras garras que se filavam nos nacos de carne, uns a seguir aos outros, numa fome insaciável.

E, como quem, antes da compra, avalia as qualidades de um cavalo, Federico Amásio concluiu para os seus botões que aquele espécimen da raça humana e aquelas enormes mãos lhe interessavam e lhe podiam ser úteis. E logo ali o baptizou, interpelando-o, peremptório, sem sequer o escutar ou ouvir-lhe uma fala e tu aí, Canhoto, podes ficar o tempo que quiseres, não falta por aí trabalho e eu sempre desejei ter um canhoto cá em casa! E, numa gargalhada estridente e alarve, dizem que dá sorte…

Zé Canhoto não ficou um dia, nem dois, ao serviço da Casa Grande. Nem um mês. Nem um ano ou dez anos. Ficou a vida inteira, como veremos.
(…)

Manuel Veiga

sexta-feira, março 22, 2019

ÁGUAS NUAS E FRIAS ...


 Minha coreografia são meus passos
Minha caligrafia, meus versos.

Meu espelho são águas claras
- Águas nuas e frias! - E o mergulho
De meus gestos.                           

E a cascata de meus afectos
E o fulgor de meus enleios.

E o pulsar de meus pulsos!

E a memória dos dias faustos
Que não contabilizo danos
Nem perdas.

E de contas acertadas, faço gosto!


Manuel Veiga

terça-feira, março 19, 2019

O MEU ESPÓLIO


O dia, em que um poeta for enterrar
Entregar-te-ei o espólio de meus sonhos.
Talvez recebas apenas
Minhas cãs em desalinho. Ou as cinzas pela antiga casa
E as maças emolduradas. E a sala de visitas 
Deserta e o silêncio dos passos. 
E o chocolate fervido e o vinho quente
A atapetar o palato
E as narinas.
Ou talvez a brusca debandada de meus olhos
Tordos acesos a riscar o ar e agora baços.
Ou o espúrio cio dos gomos.
Ou o calor íntimo das amoras
Mel silvestre a tingir as bocas
Ante o incêndio 
Das salivas.
E encontrarás, estou certo, um ramo de lírios
Desbotados, acabados de colher, e o regaço
Da Mãe e a criança solitária e o fio de água
De meus olhos agora secos.
Talvez a bênção do dia e missa dos sentidos
Encontres nessa caixa de abandonos.
Ou aquele poema amarrotado
De que me faço distância e eco
A martelar nos ouvidos
Como remorso
Ou destino:
Que mais nada tenho! 
Manuel Veiga
(poema editado)


domingo, março 17, 2019

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - TAKE 11


Que razão inscrita na ordem das coisas pode levar a Natureza a dotar a mão esquerda de um homem das aptidões e valências que outros homens têm na mão direita é mistério que estas mal cerzidas palavras, sem sentido de medida, a assumirem-se, com vocação literária, jamais buscarão entender, sendo porém certo que a dominância da esquerda no corpo dos indivíduos é algo estranho, uma espécie de enfermidade congénita que corrói como marca física e transporta tão grande importância simbólica, que pode efectivamente determinar, muitas vezes, o próprio carácter dos homens e a predestinação de suas vidas e, não raro, em tempos de obscuridade e opressão, constituir-se como ferrete de ignomínia e de exclusão, de tal maneira que o sujeito de tal enfermidade, ou tendência, ou hábito, ou malformação, ou jeito do corpo, ou vício endémico do carácter será conhecido, não por seu nome próprio, ainda que ungido em sagrada Pia Baptismal, com toda a corte de anjos celestes, que assim sempre acontece quando uma criancinha de meses é solenemente ungida com os sagrados óleos, mas pela alcunha de Canhoto, sinónimo de canhestro, marca gritante de desajeitado e sem préstimo, enfim, atávico sinal de exclusão social.

Assim era naquele tempo de brumas, quando o Zé Canhoto, ali chegou, àquela aldeia das Terras do Demo, vindo não se sabe bem de onde, mas que alguns, que por mais vivaços se tinham, diziam ser originário para lá dos montes, que daquela margem esquerda se avistavam, aonde muito raramente alguém ia e, donde uma vez por outra, alguém escassamente chegava, bem se sabendo que a vida se faz a sul e não a norte ou não fossem as águas frondosas do Douro fronteira e, depois delas, as arribas do rio Sabor, que, no Pocinho, entra sorrateiro em águas mais poderosas e, ultrapassadas as águas da foz, horas e horas corridas, por montes e vales, descendo e subindo, subindo e descendo até a vista poder espraiar-se pelo vale da Vilariça ou perder-se, novamente, pelos sinuosos caminhos, enfeitados de amendoeiras e oliveiras e hortas e pomares de Moncorvo e Vila Flor ou, mais para norte, para os úberes vales de Alfândega da Fé, Mirandela ou Macedo de Cavaleiros. Mas para chegar até lá, quem se arrisca sem razão funda? E quem, em seu juízo, mete pés a caminho, em direcção ao norte escarpado, quando os rios correm não para norte mas vão todos em direcção ao mar? Nada, pois, tudo bem visto e ponderado, nada de estranhar que os homens não subam em direcção ao norte e, pelo contrário, melhor se compreende que um desconhecido, que com nenhum outro nome ou graça se dá ao conhecimento que não seja o monossilábico som de , como se as tumultuosas águas do rio Douro e os deuses que as governam, como castigo pelo atrevimento da passagem a nado, de noite, pois seus passos, não se compaginavam com passagem à luz do dia na pachorrenta barcaça e cuja ousadia, que quase lhe levava o corpo, lhe tivessem arrebatado, em banho sacral invertido, sobrenome ou apelidos, nada pois mais normal para quem do mundo conhece um mínimo de seus caprichos, que um sujeito de tudo desprovido até de nome, obedecesse ao ritmo e à direcção das águas e ali arribasse, como as trovoadas, ou seja, inesperadamente, deixando marcas, como se verá, em tempo literário a seu tempo narrado, proveniente de terras além-Douro, no norte do País, ninguém ali sabendo ao certo quem era, nem ao que viera, se por rixa e fugido à justiça, se por mal de amores, ou mal de fome, sendo verdade, que naquele tempos de negritude e miséria, a fome era apenas outro nome para indigência, que nada mudaria com o lugar escolhido para viver, como piolho não muda de poiso em camisa suja.

Seja como for, a verdade é que o ali estava, nem sequer Zé Ninguém que outra coisa não era, nem sequer ainda Zé Canhoto que em breve seria, fazendo-se jus à sua mão esquerda que na morfologia do corpo e no jogo de forças que invisíveis se jogam no cérbero e marcam o carácter e predestinam o curso da vida, ali estava pois o , provindo de além-Douro, das quebradas do alto Sabor ou do alto Tua (vá lá saber-se ao certo!) a bater à porta da Casa Grande, a pedir guarida e trabalho, naquela aldeia nas Terras do Demo, cujo termo soalheiro descaía em socalcos pela margem esquerda do Douro vinhateiro.

Apressemos, porém, os tempos e abreviemos os nós desta estória do Zé Canhoto, que ainda não era e, em breve seria, pois este nosso tempo tem pressa e urgência em colher e a rosa-dos-ventos, em que a vida se joga e que em todas as direcções aponta, é, por enquanto, auspiciosa e nos concede uma suave brisa a enfunar as velas, empurrando o mar desta narrativa, que sem rebuço se quer literária, verdade seja que sem golpe de asa ou centelha criativa – suprema ironia – pois por maior que seja a presunção do escrevente e o seu zelo, olhando em redor, não se vislumbra que Camilo se passei por perto, disposto a ditar sua prosa encantatória e voraz, a erguer o Zé Canhoto como um dos seus heróis românticos ou, se não herói, pelo menos personagem consistente que lhe garanta lugar marcado na galeria da eternidade, nem sequer Aquilino, de espingarda ao ombro e em sua saga político-literária, a lançar mão da vida canhota do Zé, que aquelas paragens chegou, vindo sabe-se lá donde, passando portentosas tormentas e, com ela, com a vida do , entretecer sua prosa apaladada e bravia, moldada em sábio e vero linguajar, numa réplica hodierna do belo romance Terras do Demo, ou - quem sabe? - talvez uma nova versão de “Quando Os Lobos Uivam”, pois, se os baldios são ardidos e desertos, não faltam, porém lobos, a descer aos povoados (que restam).

Mas apressemos os passos, que nestas linhas cruzadas de contar, importa que as raízes não sequem o tronco e os ramos e bem sabemos que Manuel Maria é o centro, onde os nós da narrativa se tecem ou se deslassam e, quando outros laços e nós da escrita se buscam, são ainda seus passos e seus gestos que se perseguem, de tal forma que, sendo certo que deixamos o nosso herói (a contragosto), no auge da Revolução de Abril, o novel arquitecto Manuel Maria, a acreditar genuinamente numa Arquitectura para o Povo, subindo a escadaria dos Paços do Concelho, de um Município da Área Metropolitana de Lisboa, a colocar-se ao serviço da Revolução, indo ao encontro de José Augusto Esquerdino, recém-eleito Presidente da Comissão Administrativa, em amplo e participado plenário da população, é exigência de entendimento e da ordem das coisas narradas que se persigam os fios desatados para que se possam desvendar finalmente os laços e veios e, para além deles e do acaso de suas vidas, que poderão unir homens tão diversos, em diversas pontas do tempo, como sejam Zé Canhoto, José Augusto Esquerdino e Manuel Maria e que fatais razões do destino ou determinação da escrita poderão levar a que estes três homens vão entroncar, como em águas matriciais, naquele local ignorado, algures em Terras do Demo, na margem esquerda do Douro, cujo termo solarengo descai em socalcos para as frondosas águas do rio.
(...)

Manuel Veiga

sexta-feira, março 15, 2019

"IDOS DE MARÇO..."


Dizem que os “idos de Março”
Foram fatais a César.

Mas César, desafiara os deuses
E levara Roma, aonde Roma nunca houvera.
Por isso os deuses o ungiram.
E os homens o invejaram.

E o peso do Universo e todas as invejas
César, com estoicismo, aguentava.

No entanto, Brutus – um homem honrado! –
Apunhalou o Amigo. Pelas costas!...

Não por cobiça – que Brutus é um homem honrado!
Mas porque Pompeia, mulher de César
Que séria nunca fora, séria jamais seria
Em seu resguardo de parecer honrada…

Para Brutus a traição, para Pompeia a Fama
Para César o que é de César!


Manuel Veiga





terça-feira, março 12, 2019

GLÓRIA AO ALTIVO MELRO...


Glória ao altivo melro em sua sebe. Soberano príncipe
Catando a hora em reflexos de luz. E o viço de meus olhos
Abrindo-se no negro vertebrado das asas
Em timbre de azul...

O sol é apenas pretexto. E o voo a indolência.
Não a chama, nem o sobressalto, nem o “piolho da existência”.
Apenas a imprevisível ave rasgando o ar
E a tarde caindo resiliente...

Nem passado nem futuro. Imanente o sopro
E o aguilhão de minha ausência. E a secreta passagem
Entre a fugaz ave e a alma evanescente...

Talvez a sombra de Torga seja a árvore.
E o magoado sorriso de Caeiro
A indeclinável sombra…

Manuel Veiga
 (poema reeditado)

sexta-feira, março 08, 2019

NÃO TE CELEBRO, MULHER ...


Não te celebro mulher que celebrar-te
É forma agónica de dizer-te. Ou aprisionar-te
No viciado jogo que se arrasta no equívoco
Das celebrações e de muros derrubados

Não, não te celebro, mulher. Nomeio-te.
Murmuro teu nome e, em cada sílaba, Sibila,
Digo teu nome. E, em teu nome, todos os nomes
E digo Amor, em teu nome.

E digo-te Sonho e Lume. E Lúmen. E digo-te
Sorriso. E digo-te Lágrima. 

E nomeio-te Companheira. E digo-te Camarada.

E nomeio-te Ventre e Seio.
E digo-te inquietação. E grito
E nomeio-te Fome e Sede.

E Mãe. E Filha. E Mátria. E Pátria.
E Liberdade Livre.

E digo-te Insubmissão
E nomeio-te Mãe-Coragem.

Não, não te celebro, Mulher:
Tu és a Celebração da Vida.

Manuel Veiga

Nota:
Os últimos dois versos, agora introduzidos, correspondem à ideia expressa no comentário de "ROSA dos VENTOS". Se ela me permitir, passam a fazer parte do poema. Grato.

quarta-feira, março 06, 2019

QUE OS CORPOS REINEM...


Colhe o poeta a cor do sonho na paleta
Com nuvens que sob onírica dança se desenha
E na abertura dessa entrega, sem saber
Se sai ou entra, o azul ao longe...

Advinham-se corpos irreais em transparência
Reclinados sobre colchas sem memória
Como sombras pressentidas na luz imensa
Que o dia clama...

Talvez crianças caprichosas ou velhos faunos
Desfaçam a leve renda ou a subtil brisa os descubra
Desnudados. Sem culpa e sem remorso.
Bárbaros e puros...

Talvez deste lado da paisagem onde beijos correm
Como ondas e os dedos do poeta se deslassam
Nas carícias, a cor capriche
No tempo breve. E na suave tarde
Os corpos reinem...


Manuel Veiga

domingo, março 03, 2019

CARNE VALE ...


 Queixou-se uma noviça ao pai honrado
Que da ordem, um tafulão
Lhe tinha quase à força escarapelado
O virgíneo botão: “Gritaste ao menos
Contra o agressor, misérrima tolinha!”
(Exclama o ginja, já todo em furor).

“Não, meu pai, não convinha
(Lhe torna a triste) que era pior mal;
Sendo alta a noite, tempo mui perigoso
De incomodar o meu provincial,
Que com a abadessa estava no seu gozo”.

Filinto Elísio – 1734/1819
Antologia de Poesia Portuguesa
ERÓTICA E SATÍRICA – Natália Correia
Antígona- 3ª Edição – Lisboa 2000


... e quem não gostar de carne que coma peixe!
ou faça dieta!



AS VALQUÍRIAS ...


Em noites brancas e circulares da insubmissão do sangue
Basta saber escutar para ouvir suas loucas cavalgadas
As Valquírias…

Voam distâncias. Nuas. Apenas cobertas de luar
E a vergasta dos cabelos. Que frenéticas sacodem
Em risos colossais e esgares que ressoam
No eco das montanhas
Quais trombetas...

Evitam encruzilhadas. E em magotes se apressam
E se juntam no destino. Em círculo debaixo dos salgueiros.
E cantam e dançam. E sacodem as ancas
E se mimam...

E com furor nas gargantas, gritam. E em êxtase tremem.
E se agitam. E se abraçam. E se incendeiam
E se cobrem de cinzas.

E invocam as Trevas. Num trovejar de fogo e ritmo
Soberbas erguem o símbolo fálico. E o momento de glória.
E se encenam em simulacro. E no sarcasmo.
Algumas se penetram. E em delírio
Se esgotam. Em sobressalto...

E se banham. E perfumam os corpos.
E trocam seus unguentos. E colhe o orvalho
E os fios de luar em que tecem
Seus filtros...

E dulcificam o canto. E solenes se dobram
E iniciam as virgens com dedos de prata e lume
No mistério do sangue. E do mênstruo.

E se louvam, filhas de Gaia
E de Eros...

E quando a Lua esmorece. E o Oriente se anuncia
Tingindo o céu. Luzem então as armaduras frias
E regressam aos leitos. E desfolham, então,
Açucenas no peito alquebrado
Dos guerreiros...

Basta saber ouvi-las – as Valquírias!...

Manuel Veiga
“Do Esplendor Das Coisas Possíveis” – pág.34
Poética Edições – Lisboa -  Abril 2016



Orquestração de Hinos

  Polpa dos lábios. E a interdita palavra Freme… E se acolhe Em fervor mudo E sílaba-a-sílaba Se inaugura… Percurso De euf...