Aquele tempo, porém, era ainda tempo de Cantinas Velhas e de borbulhas a
formigar revoluções e tigres de papel e
correrias à frente da polícia em “Primeiros
de Maio Vermelhos”, com o Rossio a abarrotar de revolta e a GNR a
espadeirar sem olhar a quem, operários, estudantes, passeantes e turistas, velhos
e novos, mulheres e crianças, cabeças a sangrar, quedas e tombos na correria,
ferraduras dos cavalos empinados a relincharem e a chisparem na calçada, gritos
e aflições, grupos organizados que, em carrossel, se revezavam e apareciam e
desapareciam, inesperadamente, por detrás dos cavalos, gritando, amálgama de
insultos e palavras de ordem, alguns manifestantes, mais decididos e bem
organizados, a esquivarem-se dos bastões e a segurarem as bestas pela brida e a
passarem-lhe pó de pimenta pelas narinas dilatadas e o escoicear frenético e
equilíbrio instável dos guardas sobre as selas e Manuel Maria acossado, a
sangrar e a correr pela Rua do Carmo acima, quase filado pelos cascos do cavalo
e pelo bastão do façanhudo guarda, erguido, lá bem alto, na iminência de descer
novamente sobre seu frágil e dorido costado. E, naquele vendaval de pancadaria,
por entre as dezenas de manifestantes, que, em desespero, buscavam protecção na
fuga e nas reentrâncias dos prédios, como uma bênção caída dos céus, sem que
nada a fizesse prever, Manuel Maria é puxado para dentro da vedação de um prédio
aparentemente em obras, prosseguindo o polícia e o cavalo, com o Manuel Maria a
salvo, o afã de perseguição dos manifestantes mais à mão de semear, como soe dizer-se, bem se sabendo que, como em tudo na vida, tantas
vezes, o mal de alguns é alívio de outros.
De tal sorte que, também no caso, embora apenas precariamente
separado da agitação e dos perigos do exterior, por um frágil tabique, a
verdade é que Manuel Maria se sentiu em segurança, com o breve ruído seco da
porta a ser trancada e o sorriso irónico do homem, alto e louro, não mais
de quarenta anos, uma bela barbicha também loura a enquadrar-lhe o rosto
sedutor, impecavelmente vestido, último grito da moda, como se fosse modelo
saído de uma vitrina, onde apenas as mãos desmesuradas e os dedos grossos
destoavam da elegância do porte, imperturbável e sorridente, como se as
dantescas cenas que lá fora, literalmente,
a um palmo do nariz, se passavam e de
que a cabeça partida e o rosto ensanguentado do jovem eram testemunho dramático,
fossem para ele, o imperturbável salvador
de Manuel Maria, cenas de teatro de rua ou quadros de uma peça dramática, cuja
sequência detinha os fios.
E, então, a voz do homem, alargando o sorriso
acolhedor “Guerra é guerra! ... Tiveste
um belo baptismo de fogo, não haja dúvida!... Vai, corre! Lavas o rosto na
torneira que encontras lá ao fundo, saltas o muro, corres pelo logradouro,
segues pela cave do prédio em frente e estás a salvo”…
Manuel Maria, ainda a titubear de surpresa e
emoção, agradeceu e quis conhecer o nome de seu salvador. “Que nada! vai, foge! – exclama com firmeza, o desconhecido – conhecerás o meu nome um dia, se tiver de
ser…”. E Manuel Maria jurou para os seus botões que jamais iria esquecer
aquele rosto e o tamanho daquelas mãos, que apenas outras assim vira em tempos
esvoaçantes da infância, numa aldeia longínqua das Terras do Demo, onde pela primeira vez vira a luz do dia, filho
incógnito de amores espúrios de criada de servir, em vetusta Casa Senhorial.
Rapidamente, porém, Manuel Maria varreu
lembranças antigas (que a hora era de outras dores) e se escapuliu, através do
logradoiro dos prédios, seguindo as instruções de seu salvador, indo desembocar
a meio da Rua do Ouro. Afogueado pelas emoções e pelas correrias, Manuel Maria
disfarçou como pode os hematomas e os resquícios de sangue nos cabelos,
enfiando uma larga boina basca e, afoito, caminhou, em passada larga, rumo ao
Rossio, apto a prosseguir a luta e a candidatar-se a umas novas bordoadas. O
ambiente, porém, mudara, em poucos minutos. Tal como se desencadearam, sem nada
o fazer prever, qual cenário em ópera bufa que, inesperadamente, se altera ou, dito
com mais propriedade, como se, após forte trovoada, a atmosfera se abrisse em
bonança, ainda porém sob o efeito da tensão eléctrica, assim também a agitação
e os gritos e as correrias e os polícias e os cavalos e as imprecações e as
palavras de ordem e os desmandos e as chanfalhadas e as costelas partidas e as
cabeças abertas e os incautos e pacíficos transeuntes apanhados, sem dó nem
piedade, na onda da bestealidade policial se haviam calado e a larga praça do
Rossio, orgulho de lisboetas e encanto de turistas, retomava gradualmente a sua
pachorrenta rotina, com caixeiros e lojistas abrindo novamente portas e
vitrinas, um grupo ou outro a comentar os acontecimentos, prontamente desfeito
pelos polícias de giro e os esparsos gritos das sirenes a riscar os ares e um
pelotão da polícia de choque acantonado nas traseiras do Teatro D. Maria não vá o Diabo tecê-las e a onda levantar-se
de novo e o os cavalos da Guarda Nacional Republicana recuados na Praça da
Figueira e rasgão na cabeça do Manuel Maria a doer c´mo caraças, e a estação do Metro do Restauradores rumo à
Residência de Estudantes e a remoer sozinho os acontecimentos da tarde, que não
se alcançava pelas redondezas nenhum dos amigos que a brutalidade da carga
policial havia separado e tal fora combinado que, em caso de dispersão, cada um
regressaria por seus meios.
E assim também agora, por seus próprios meios, em tempo literário outro, já não tempo de
borbulhas a formigar revoluções e 1º de
Maios vermelhos e proibidos e manifestações reprimidas e cabeças partidas,
que esse tempo é tempo passado e em todas as laudas da história pátria jurado tempo de fascismo
nunca mais, mas neste tempo
agora, tempo de cerejas e grávido de
promessas e de revoluções ao vivo, tempo de sonhos e de quimeras e canções que
alguma coisa há-de sobrar delas, das canções e das quimeras e dos sonhos e
desse tempo e desse povo também, a tomar em suas mãos o seu destino e o novel
arquitecto Manuel Maria a acreditar genuinamente numa Arquitectura para o Povo e, neste ínterim, a subir aos Paços do
Concelho, determinado a colocar os seus conhecimentos urbanísticos ao serviço
da Revolução e oferecer a sua colaboração a José Augusto Esquerdino, recém-eleito
em amplo plenário da população, Presidente da Comissão Administrativa da Câmara
Municipal.