sexta-feira, maio 31, 2019

POEMA LÍQUIDO


Na suavidade da pele a caligrafia de todos os nomes
Letra a letra. Urdidura dos lábios no percurso
Da sede. E desmesuradas línguas

Notas de um piano a arder na combustão dos corpos
E clandestinas grutas. Como chamas.

Declinamos o tempo no encantamento dos olhos
A derramarem-se por dentro na doçura do rosto
E no sinfónico movimento.

E na incandescência alada dos murmúrios
Assim libertos – grito sustido
No âmago.

A explodir desmedido
Qual poema líquido.


Manuel Veiga



terça-feira, maio 28, 2019

No Topo Mais Alto De Todos Os Topos

Bem no alto, no topo mais alto de todos os topos
Onde todas as bandeiras se desenham e os ventos
Flutuam abrindo espaço aos hinos e as espadas
São o faiscante sol das batalhas e as gloriosas
Demandas de todos os destinos e os passos dos homens
O pulsar ainda magma das cidades futuras e os mares
São o sonho líquido das montanhas e as caravelas
Um punho fechado de utopias pleno. Nevoeiro
E visionário rasgo de profecias alvoroçadas
E as pátrias são iniciático gesto e ombro de escravos
E os dias se contam por mistérios.

E a música é planície atonal
Sem topo e infinito silêncio maturado de mil ecos
E respiração das estátuas.

E todas as coisas falam de seu destino
Na linguagem primordial dos afectos. E das recusas.
E se moldam qual partitura de uma sinfonia
Sem maestro. E as palavras e as coisas se incendeiam
No mesmo fogo. E se dizem numa geografia de territórios
Íntimos. Verso e reverso da mesma fala. Trama de luz
E sombra a desenhar o invisível fio dos tempos
E as brumas da História.

Então o poeta demiurgo embora
É sopro medianeiro. Apenas, E o poema desmaiado reflexo
Da metáfora do Mundo.

Manuel Veiga






domingo, maio 26, 2019

Que Não Neguem Os Lábios ...


Que não neguem os lábios
O que o coração enseja…

Nem as margens, Lídia,
O ímpeto das torrentes…

Nem os nocturnos silêncios
O carmim das auroras
Nem o capricho dos deuses…

Perfumemos nossos corpos
E mergulhemos nas fontes
E zombemos dos deuses, Lídia,
Que nos invejam!...

E celebremos o amor
Em nossos corações ledos…

Manuel Veiga

Nota : Lídia é uma criação literária de Ricardo Reis





sábado, maio 25, 2019

EM TEMPO DE REFLEXÃO POLÍTICA


Comunicação Social e Poder


1 - A configuração do poder é multifacetada. Assume diversas máscaras numa encenação do Mesmo, quer dizer, da articulação dos interesses económicos dominantes, instância última onde reside o verdadeiro rosto (invisível) do Poder.

Primeira consequência: não há apenas um sistema formal de poder, mas uma multiplicidade de sistemas de poder, disseminados no interior da sociedade, muitos dos quais meros poderes fácticos, que dizer, sem qualquer estrutura (visível) que os suporte.

Segunda consequência: nenhum sistema de poder é, em si mesmo, autónomo e independente dos restantes: os diversos sistemas de poder desdobram-se uns nos outros, funcionando em rede, retroagindo nos respectivos chamamentos. Decorre, portanto, que o poder não é apenas o “lugar de poder” que se observe, se ocupe, máxime se conquiste, mas sobretudo uma “relação de poder”, em  que, ou se exerce ou se sofre – não há poder, sem “exercício do poder”...

2 - Tradicionalmente o poder de Estado tem assumido o lugar por excelência do “exercício do poder”. Compreende-se. O Estado, nas sociedades politicamente organizadas, detém o monopólio da violência. É o único sistema de poder que se poderá impor pela força e pelo constrangimento físico. Quer dizer, o poder Estado é essencialmente coercivo...

Como é óbvio, a “domesticação” da violência através do poder de Estado representa um avanço histórico incalculável, hoje em dia; tal não significa, porém, que a violência não faça parte da sociedade e, em determinados contextos histórico-sociais, não possa ser ela própria “parteira” do devir social.

3 - Outros sistemas de poder actuam na sociedade, porém. Não pela coerção, mas pela persuasão; não pela imposição da lei e da ordem ou pela violência física se necessário, mas pelas artimanhas da ideologia. De forma mais subtil, portanto. E em imbricada cumplicidade com o poder de Estado. Como acontece com o poder mediático.

É na propagação de uma ideologia que o “poder mediático” se cumpre. Poder mediático que excede o papel dos órgãos da comunicação social e quadro do constitucional direito à informação, para envolver a indústria do entretenimento, as agências de comunicação, a publicidade, o marketing, o consumo, o sistema de moda, o desporto e tantos mais - uma vasta panóplia de meios, que encenam aquilo que alguns designam por “Sociedade do Espectáculo”.

4 - Os meios são diversos. O fito, porém, é sempre o mesmo – a neutralização do poder dos cidadãos, pela aceitação acrítica da ideologia. Então as diversas configurações do poder mediático, em apoteose de efeitos, proclamam a “inevitabilidade” da vida quotidiana, sem qualquer hipótese de remissão.

Seja pela angústia ou pelo medo. Seja pelo hedonismo do consumo e do lazer. Seja pelo culto do “parecer” (mais que o “ser”, ou mesmo o “ter”) o que importa na dita “Sociedade do Espectáculo” é isolar e atomizar o individuo, massifica-lo, desmembra-lo da sua condição de cidadão, inibi-lo na sua autonomia, frustrar a fecundidade da participação social e assim o submeter voluntariamente aos ditames da ideologia dominante e dos interesses económico-financeiros que serve e a justificam.

Como romper o cerco?

Manuel Veiga


EU VOTO CDU !
Coligação Democrática Unitária


quinta-feira, maio 23, 2019

"PERFIL DOS DIAS" NA FEIRA DO LIVRO






POEMA MÍNIMO

Quero poema mínimo
Que enunciá-lo seja big bang
Do Universo

E teus olhos
Eterna vibração
Do Mistério

E meu silêncio
Sombra ardente
Do Desejo

Manuel Veiga

"Perfil dos Dias" - Pág. 46
Modocromia Edição

quarta-feira, maio 22, 2019

Pétala Em Olhar Claro



Tímida lágrima
Que aflora em olhar claro

Pétala e frémito d´alma
A desfolharem-se
Na dádiva…


Manuel Veiga



CHICO BUARQUE - PRÉMIO CAMÕES






" É  UMA VOZ OUVIDA NA OPINIÃO PÚBLICA DO BRASIL,
NUMA ALTURA EM QUE A CRIAÇÃO ARTÍSTICA ESTÁ A SER TÃO ATACADA.

ESTE PRÉMIO É TAMBÉM UMA MENSAGEM
PARA A OPINIÃO PÚBLICA
DO BRASIL"

Clara Capitão, membro do Júri
in Público 22.05.2019


domingo, maio 19, 2019

COLORIDA GOTA ...


Que a palavra venha pois
Assim secreta. Colorida gota
Que em volúpia se derrama
E se retira. Muda.

E em silêncio
Se desenha urdidura.
E se agita. E cálida se reclama
Solar. E nítida.

Que a palavra venha pois
Assim liberta. A desvendar
A sombra

E seja númen. E nome
Na inscrição dos lábios
E das sílabas.


Manuel Veiga





PERFIL DOS DIAS - Fotos





Anti-Metáfora(s)

Que expludam todas as metáforas
E o Céu desabe!…

Da poeira
Surgirá uma estrela …

E – e talvez! –
Um poema.

Manuel Veiga

“Perfil dos Dias” – pág. 71
Edição MODOCROMIA



sexta-feira, maio 17, 2019

"PERFIL DOS DIAS" - SEDE E ÁGUA(S) - CONVITE


Quando a nudez explode generosa flor
Em pétalas recolhida. E os olhos se derramam
Como rio sobre as margens.
Ou perfume raro que inebria
E ousa e perdura
Subtil presença.

E os sentidos são poema e sinfonia
E o sorriso serena entrega
E o olhar se anuncia
Mergulho
E roteiro
E secreto
Mapa.

E ventos labaredas em fusão de bocas
Vaivém e ondas soltas
A explodir em pontas
Bailado de salivas
E de urgências
Várias.

Então os corpos (já não corpos)
Apenas sede
E água(s)!...

Manuel Veiga

Colecção "Sede e Água"
Edição MODOCROMIA




SEJA BEM VINDO QUEM VIER POR BEM! ...


quinta-feira, maio 16, 2019

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI – Take 14


Subia, pois, Manuel Maria a escadaria do edifício da Câmara Municipal, conjunto arquitectónico de linhas sóbrias, com duas colunas embutidas, rematadas por frontispício triangular, a enquadrar o portão de entrada, depois de alcançados três degraus exteriores e plataforma em granito e, depois, vencido o portão, lá dentro, amplo pátio, ladeado por portas e guichets de serviços camarários e ao centro, em sequência da entrada, mais um lanço de sete degraus e novo patamar, agora a abrir-se, de cada lado, em dois novos lanços de cinco degraus, que, no primeiro andar, desembocam num varandim interior, a toda a largura do edifício, e um conjunto harmónico de três portas largas, a abrirem para o Salão Nobre, engalanado, nas paredes, em toda a extensão por retractos de insignes vultos da República e ao centro do salão, a debruçar-se para o largo exterior, uma ampla varanda, lugar onde, por exigência do povo, a abarrotar no largo, a República Portuguesa foi proclamada a 4 de Outubro de 1910, antecipando assim num dia o “5 de Outubro”. Derramava-se, pois, Manuel Maria nessa evocação dos vultos republicanos, que muito o seduziam e dos episódios da revolução republicana, que muito o inflamavam, procurando nas linhas do edifício e na organização do espaço, os sinais, veios e acontecimentos em que a história pátria se condensa e se consagra em suas euforias e também nos seus desmandos, tragédias e recuos, que a História não é linha de montagem, a somar sempre em frente até obra acabada, mas antes esteio de imprevisibilidade, tecida de diversos fios e ritmos e, quando maduro o tempo e acesa a vontade dos homens, então pode acontecer uma explosão de energia inesperada, que se expanda e projecte o presente rumo ao Futuro e, assim, dê sequência e clareza ao fluxo dos tempos, na cadeia ininterrupta do devir social.

Desta forma, Manuel Maria o compreendia, a espreitar agora, discretamente, a rua, assomando ao varandim do Salão Nobre, onde fora mandado aguardar que o Camarada-Presidente o iria receber dentro de momentos, e, nesse intervalo, a recriar, na sua mente, o bruáaaaa da Praça apinhada, ante o discurso inflamado da antecipada proclamação da República. Enfim, tempo passado de raízes fundas, a fecundar um tempo outro, em todas as laudas da história pátria jurado tempo de fascismo nunca mais, tempo de agora, tempo de cerejas e grávido de promessas e de exaltantes momentos da instituição do Poder Local Democrático e de aprofundamento da democracia, introduzindo nas fórmulas e formas de representação democrática a indeclinável natureza participativa da práxis democrática e a “retirar o fascismo dentro da cabeça das pessoas”, mediante activa participação cívica e política,
                                          
Manuel Maria não conhecia, ou julgava não conhecer, pessoalmente, José Augusto Esquerdino, que teve papel destacado nas eleições presidenciais de 1958, como promotor e apoiante da candidatura de Dr.º Arlindo Vicente e, posteriormente, no processo de unidade antifascista que levou a desistência desta candidatura a favor do General Humberto Delgado, conhecido por General sem Medo, depois do seu desassombrado Obviamente, demito-o!... referindo-se o General (obviamente) ao todo poderoso Salazar, o que empolgou o País de lés a lés, numa das jornadas mais fecundas da história pátria, sendo bem verdade que o General pagou com o exilio e a morte a afronta feita ao ditador e ter sacudido as honrarias com que o regime o cumulava para passar, de corpo e alma, para as incertezas e agruras da oposição.

Não se dirá que o envolvimento de José Augusto Esquerdino, na campanha eleitoral de Humberto Delgado constituísse o seu baptismo de fogo na luta política, mas, de qualquer forma, a sua decidida e corajosa participação e a sua forte personalidade granjearam-lhe papel relevante em futuras lutas e fez dele um verdadeiro herói para os jovens estudantes a borbulhar revoluções, nas discussões permanentes do selecto grupinho da Avenida de Roma.

A auréola revolucionária de José Augusto que se agigantava perante os jovens estudantes, filhos da burguesia que abominavam, decorria imediatamente da circunstância de estarem perante um representante da classe operária e, pour cause, ungido na gloriosa missão de fomentar a unidade de “Operários e Camponeses” e guiar as massas no assalto aos céus da Revolução Proletária, que a mente escaldante dos jovens vislumbrava ali ao dobrar da esquina, sentados nas cadeiras da Pasteleira Roma. Verdade seja dita que, nem Manuel Maria, nem o circulo seus amigos mais próximos embarcavam nesse delírio revolucionário, do qual ostensivamente se demarcavam, arcando com epiteto “revisionistas” com que eram, depreciativamente, mimoseados, pois que, nesse núcleo restrito de amizade sólida, mais que explicações teóricas sobre a inevitabilidade da Revolução, ansiava-se, sobretudo, por “molhar a sopa”, quer dizer, juntar a sua insipiente acção política ao fluxo geral da resistência, com umas pinchagens nos muros do Bairro, a altas horas da madrugada, ou uma ou outra de distribuição de panfletos nas caixas o correio, acções que o Artur Fontes enquadrava, com zelo conspirativo e a meticulosidade que o haveria de caracterizar, ao longo da vida, no impoluto exercício da profissão de advogado.

Porém, foi pelo Quim Remédios e não pelo Artur Fontes, que detinha os fios da insipiente organização e as ligações políticas, que Manuel Maria conheceu a verdadeira identidade de José Augusto Esquerdino e os laços de proximidade que os ligavam, em virtude das circunstâncias do respectivo nascimento, algures em Terras do Demo, numa aldeia ignorada, onde entroncam tantos fios desta narrativa que requer literária. Lembrava-se Manuel Maria, como se fosse hoje, dos aconecimentos que, como uma fatalidade inscrita na linha da vida, lhe troxeram o conhecimento dessa feliz e honrosa coincidência.

Era uma tarde quente de Junho. O Quim Remédios, chegou lívido de raiva e de indignação, soltando roucos insultos contra os filhos da puta e toda raça de cabrões, mais nojentos que ratazanas, que não têm pingo de honra ou vergonha e são capazes de destruir um homem e o despejam, depois, como lixo, às portas de um hospital, enquanto do alto do seu metro e noventa, as lágrimas lhe tombavam dos olhos, qual criança indefesa, que no grupo de amigos buscava lenitivo do seio acolhedor. Foi o Artur Fontes quem acalmou o Quim Remédios e o puxou para a rua, visivelmente inquieto com o descontrole emocional do amigo e o burburinho que começava a levantar-se nas mesas próximas, povoadas de balzaquianas oxigenadas e cavalheiros de meia-idade, pois que, por mais que uma vez, apesar da manifesta simpatia, o gerente ameaçara por o grupo no olho da rua - “se não tivessem juízo”. Apanhado de surpresa e, adivinhando, no desespero do Quim, coisa séria, o grupo de jovens permaneceu em pesado mutismo, até ao regresso dos amigos, mais calmo agora o Quim Remédios e o Artur Fontes a pagar as “bicas” e a ordenar uma saída discreta até ao parque de estacionamento do Cinema Roma.

Foi no interior do automóvel, onde os jovens se amontonaram, ansiosos e expectantes, que o Quim Remédios deu a conhecer aos amigos a gravidade dos factos, que presenciara, narrados na primeira pessoa, intercalando com poderosos insultos contra os esbirros do regime e a policia política, crescendo, de momento a momento, a indignação dos jovens e a revolta do jovem médico, nesse tempo literário, a fazer tirocínio profissional no Hospital Júlio de Matos, célebre instituição médica, destinada a doenças mentais, cenário trágico de mais uma brutalidade do regime e dos métodos criminosos de que se se servia para destruir os lutadores pela libertação da Pátria mais aguerridos e combativos.

(continua) 

Manuel Veiga


terça-feira, maio 14, 2019

AUSÊNCIA(S) 3


São as ausências um perfume
Evanescente. Anoitecer das camélias
À margem do mundo…

Música de fundo. Ou apenas
Um acorde jazz. Lancinantes notas
No desalinho do sax…

Ou abandono dos dedos
E a página aberta. A alma absorta
E um livro tombado...


Manuel Veiga






sexta-feira, maio 10, 2019

NA ORLA DOS LÁBIOS...


O poema desenha-se na orla dos lábios
Na íntima tensão do verbo antes de explodir
Itinerário de sombra rente à luz

Ou murmúrio subterrâneo de gestos
A florirem no rosto imaculado das coisas
Antes de acontecerem.

Como se Eros fosse falua
A singrar oceanos ignotos e o corpo
Uma chama branca a arder
No cruzamento das rotas e
No movimento líquido da Palavra
A alagar-se em fogo.

Sem metáforas…

Manuel Veiga
Perfil dos Dias - Edição Modocromia

quinta-feira, maio 09, 2019

PERFIL DOS DIAS - PREFÁCIO - DOMINGOS LOBO


 A Arte de Traçar, de Modo Lírico, o Perfil dos Dias

O escritor nas sociedades contemporâneas, não tem propriamente uma profissão. Escreve por impulso cívico ou por não poder mais evitar a indignação. Raros vivem de escrever, de efabular sobre o mundo que percepcionam, embora seja isso o que fazem em grande parte do seu tempo.

Estamos a séculos dessa mítica “era dos versos” em que os poetas, pelo simples facto de o serem, granjeavam estatuto de respeito e admiração na Polis e tinham, mesmo escassa, uma tensa que lhe permitia continuar a escrever e a cantar os seus versos.

Sei que vivemos tempos sem tempo para as palavras altas e necessárias, vivemos o aturdimento das simulações electrónicas que não nos deixa saborear um verso, reflectir sobre o coração que freme no corpo de um poema; sei que vivemos tempos estranhos (mas é o nosso tempo, e cabe-nos vivê-lo e tentar transformá-lo), tempos em que a usura e a competição se tornaram regras e a febre do dinheiro se transmudou ideologia quase dominante. A poesia, que é a arte suprema da palavra, precisa de silêncio e espaço, não campeia em tão árido chão.

«Poeta é», diz-nos Manuel Gusmão, «aquele que constrói ou compõe um mundo de palavras e de possíveis verbais, com o qual reconfigura, faz, desfaz, refaz e acrescenta o mundo de mundos que é o nosso». Que nos faz compreender o mundo, este nosso estreito mundo que a palavra poética, através dos seus signos linguísticos, tenta ampliar e tornar reconhecível.

Os poetas são gente resistente, sonhadores de utopias, mesmo no território insano da hodierna distopia que vai corroendo os imaginários mais férteis, teimam e avançam, vão pelo sonho, acreditam que um dia a serenidade regressará às cidades e será então possível conversar sobre livros à volta de um copo ou de um café, que os poetas saberão de novo cantar e o fogo das palavras há-de voltejar livre e solto, que a vida regressará límpida e inteira às suas veias, que poderão de novo consumir emoções, ideias e afectos, mesmo sabendo, como nos diz Manuel Veiga neste Perfil dos Dias, que são Esquivas as palavras/o tempo fugidio/e os olhos/ mágoas. Mesmo quando sabemos do tempo que se esvai, da ruga que na almofada amanhece e com ela mais um sinal da brevidade da vida, o poeta estará atento a esse rumor ácido que pontua os dias e saberá sempre, na luminosidade de um verso, ultrapassar o instante porque Soberbos, porém, os dias/Assim cativos de pedras/e de medos, hão-de transfigurar-se e criar raízes nesse território fértil, incontaminado das palavras.

Um tempo em que o poeta regressará aos itinerários da chuva, a soletrar estrelas, a olhar o cristal da Lua reflectido nos lagos; retornará às coisas simples e perenes, ao lugar secreto, inviolável, da nossa humanidade, a esse território efémero e líquido, à Pradaria em chamas/E potros dentro.

Neste novo livro de Manuel Veiga coexiste uma contenção sintáctica, uma simplicidade discursiva tocante, em que a metáfora (Anti-Metáfora, titula o autor) se dilui na própria construção do poema, uma técnica de recursos linguísticos que serve a ideia central sem recurso a barroquismos retóricos. O poema flui, mesmo quando os versos contêm, na sua mancha gráfica, não mais de oito sílabas e o comum dessa geografia se mantém ordenada por três versos.

Manuel Veiga consegue, neste seu Perfil dos Dias, em que o erotismo, que é sinal de apego à vida, percorre grande parte do seu corpo diegético, uma voz mais serena, mais interiorizada do que lhe reconhecemos de livros anteriores: há, neste livro, uma mais exigente depuração oficinal, um mais amplo sentido das palavras, o seu íntimo rumor, como acontece no poema Alegria Breve.

Neste Perfil dos Dias, encontramos a voz recorrente do eu interior, esses fragmentos metafóricos da inconsistência do Ser, essa busca, esse voo cego a nada como escreveu Reinaldo Ferreira, mas um voo que traz o olhar do outro, porque ninguém viaja sozinho pela vida, sem a sombra existencial, ora obsessivamente desejada, ora apenas intuída, ora indispensável como respirar, do outro. Pelo meio desta complexa gramática do corpo e dos afectos, existe a pertinência da busca de sentidos para o universo, o cosmos como um derivativo de absolutos, em que a esperança se inscreve: Deslizam as águas em rios secos/Até à raiz do nada.(...) Ou reserva de vida/Preservada: cópula de sol/E gota de água/E a ansiada/Espera...

O que é a matéria da vida? Essa Gota de água ou cópula de sol, esse húmus que nos conduz a uma contínua angustiante e perplexidade, a extensão dos sonhos, a capacidade de, apesar dos pesares, linimentos de um corpo em lenta combustão, conseguirmos reflectir, intuir sobre os sortilégios elementares, sobre o modo (modos extensos, diversos) de estar vivo neste avassalador sufoco do tempo, que a contemporaneidade, mesmo quando o poeta dela se resguarda (Lá fora o Mundo./Dentro o sopro de uma sonata), convoca e limita?

A matéria essencial (as palavras) sobre que especula Manuel Veiga, a construção da palavra(s) com que ergue os poemas, e neles tenta redescobrir a Vida, traçar o perfil dos dias que lhe coube (cabe) viver e o que à volta dela mais o amargura, seduz, estremece e, a espaços, num indelével fulgor, vertigem dúctil, extasia: o sexo, as paisagens, a literatura, as aves, os sonhos e a sua argila. Essas nebulosas que a memória atrai, esse íman perene, são a matéria da escrita, as palavras com que o poeta urde signos e os tenta libertar do seu caos imanente, desse obscuro, telúrico chão, dessa massa que fecunda o fogo.

A poesia de Manuel Veiga, balança entre territórios líricos e introspecções metafísicas e é nessa dualidade expressiva que a sua poética se aproxima das metamorfoses verbais que encontramos em poetas como Herberto Helder, Ramos Rosa ou Ricardo Reis. É nesse alfabeto lírico, nessa gramática do Mundo, quase sempre magoada, essa modelar forma de organizar o Acaso, mesmo que O Sol seja nuvem/E o meu fogo água//O teu corpo/céu aberto/seja. Um discurso poético que entronca, por vezes, em outros poetas do modernismo como, também, Mário Sá Carneiro.

Eis o escorço mimético sobre que reflecte, e inflecte, a escrita de Manuel Veiga. Formas modelares de pensar e entender a complexidade existencial e o mundo, os contornos de um tempo, geracional forma de passear pelos dias (breves mas azuis) e de lhes dar guarida, mesmo quando o alimento que nos dá é feito de fragmentos reflexivos e sinédoques, de poemas transportadores de memórias, mesmo quando estas se perdem na voragem dos dias: Eternos o tempo e o modo/ E o colapso de todas as memórias/Onde todas as coisas/ Anoitecem.

De tudo isto, penetrando o sensitivo orgânico desta matéria elementar, da “loucura portátil” que é escrever, de que nos conta Enrique Vila-Matas, nos fala por vezes, mesmo quando algum hermetismo percorre o seu corpo diegético, Perfil dos Dias. E fá-lo, nos momentos mais conseguidos deste livro, numa escrita serena, atenta às íntimas reverberações do léxico, fala expressiva e solar por vezes, A abrir-se na caligrafia muda das coisas/e no mistério delas, percorrida por modelações sintácticas de uma sonoridade vibrátil, sensível e ressumante de múltiplos aromas.

A poesia enquanto matéria e sujeito de todas as incursões pelas palavras, Síntese de fogo lhe chama o autor, deste especulativo modo de inventariação pessoal, de tábua de saberes íntimos e prósperos – de estar Vivo, e estando, inventar o discurso poético da dispersão elementar, do delta extenso que nos convoca à aventura, à exposição, às interrogações metafísicas sobre o amor, a morte, a solidão, os corpos que se amam e se perdem na voragem dos dias, o destino, seja isso o que for, a cultura, a política, as plurais formas de habitar o espaço e deixar marcas em poroso chão – um discurso poético que mais que ocultar as feridas, no-las dá a ver, assim despido, sem âncoras nem temores, deixando a poesia fluir indomável animal do espanto, que ela nasça e cresça no silêncio, ferindo-o, que aconteça mesmo quando o sentido da harmonia lhe escapa.

A soletrar a palavra transgressiva, sem um mapa, uma agenda, sem traços prévios nos caminhos a haver, que a aventura de estar vivo e atento apenas nos deixa, dos dias sôfregos A inquietação dos anjos/ E o seio do barro redentor// E se glorifica eterna/ Na fusão do sonho/ E mágoa, dado que A liberdade é essa chama, que o poeta, incessantemente, almeja.

Mesmo olhando o mundo, passeando essa “loucura portátil”, Manuel Veiga não deixa de trazer ao discurso a diversidade conjuntiva com que esta fala se ergue e se constrói, é nesse fulgor, nesse delta de raízes, que estes versos nos arrebatam em sua contínua transfiguração.

Domingos Lobo




terça-feira, maio 07, 2019

AUSÊNCIA. AINDA ...

               
               Ausência ainda. Afoita
Na excessiva letra
Intrometida
Na alma
Do poeta…

Como uma gota
Tonta...

Ou uma música
Ora perdida
Na rima quebrada
Do poema!...


Manuel Veiga






sábado, maio 04, 2019

Exposição LIBERDADE - UM PINTOR - UM POETA - UMA VISÃO


Iluminação da Cor

Liberta-se o Sol em euforia
De movimento e cor.
E a tela ávida …

Liberdade é o percurso do olhar
A tecer a relampejante harmonia.
E o momento único – iluminação
Da cor e da tela…

Coreografia alada
Do olhar – o Sol e o movimento
Do Mundo.

Manuel Veiga



sexta-feira, maio 03, 2019

PERFIL DOS DIAS - "Livro Sem Máscara, Sem Mácula."


"Neste caminhar sem pressa sobre o perfil dos dias de amar pensar reflectir sentir reescrever o verbo emocional há um ser nunca igual que se veste e despe e torna a vestir das melhores palavras para dizer do seu tempo. temporal interior.

O Poeta sempre na sua mais pujante inquietude que se despoja do supérfluo para nos solicitar uma atenção sobre a intencionalidade do sentir sem reservas a reservada alma de uma poética sem artifícios nem branqueamentos amáveis. Um perfilar de vários perfis cada um sendo poema carta ou contemplação activa que Manuel Veiga cada vez mais intenso sob um céu pessoalíssimo sonha depura e elege como espelho de Si entre os outros -nós- e nos arrasta em movimentos de intensa expressão. Como se nos quisesse dizer: vejam-me aqui nu e faminto de ser saciado e destemidamente brumoso e desassossegado. Este livro é um dulcíssimo céu aberto contra a morte e a favor da vida __________ livro sem máscara sem mácula sem alheamentos.

Espólio de emoções. Vibrante perfil e retrato fatal de quem é assumidamente Poeta. Manuel Veiga ___________ o Poeta consciente do mundo púrpuro que o cerca e ao qual não se rende. Antes se prende. como se música para sempre."


Isabel Mendes Ferreira



Para Um Novo Teorema da Fisica Moderna

  dizem expeditos cientistas que o leve bater das asas de uma borboleta à distância de milhares de quilómetros pode causar uma catás...