A Arte de
Traçar, de Modo Lírico, o Perfil dos Dias
O escritor
nas sociedades contemporâneas, não tem propriamente uma profissão. Escreve por
impulso cívico ou por não poder mais evitar a indignação. Raros vivem de
escrever, de efabular sobre o mundo que percepcionam, embora seja isso o que
fazem em grande parte do seu tempo.
Estamos a
séculos dessa mítica “era dos versos” em que os poetas, pelo simples facto de o
serem, granjeavam estatuto de respeito e admiração na Polis e tinham, mesmo
escassa, uma tensa que lhe permitia continuar a escrever e a cantar os seus
versos.
Sei que
vivemos tempos sem tempo para as palavras altas e necessárias, vivemos o
aturdimento das simulações electrónicas que não nos deixa saborear um verso,
reflectir sobre o coração que freme no corpo de um poema; sei que vivemos
tempos estranhos (mas é o nosso tempo, e cabe-nos vivê-lo e tentar
transformá-lo), tempos em que a usura e a competição se tornaram regras e a
febre do dinheiro se transmudou ideologia quase dominante. A poesia, que é a
arte suprema da palavra, precisa de silêncio e espaço, não campeia em tão árido
chão.
«Poeta é»,
diz-nos Manuel Gusmão, «aquele que constrói ou compõe um mundo de palavras e de
possíveis verbais, com o qual reconfigura, faz, desfaz, refaz e acrescenta o
mundo de mundos que é o nosso». Que nos faz compreender o mundo, este nosso
estreito mundo que a palavra poética, através dos seus signos linguísticos,
tenta ampliar e tornar reconhecível.
Os poetas
são gente resistente, sonhadores de utopias, mesmo no território insano da
hodierna distopia que vai corroendo os imaginários mais férteis, teimam e
avançam, vão pelo sonho, acreditam que um dia a serenidade regressará às
cidades e será então possível conversar sobre livros à volta de um copo ou de
um café, que os poetas saberão de novo cantar e o fogo das palavras há-de
voltejar livre e solto, que a vida regressará límpida e inteira às suas veias,
que poderão de novo consumir emoções, ideias e afectos, mesmo sabendo, como nos
diz Manuel Veiga neste Perfil dos Dias,
que são Esquivas as palavras/o tempo fugidio/e
os olhos/ mágoas. Mesmo quando sabemos do tempo que se esvai, da ruga que
na almofada amanhece e com ela mais um sinal da brevidade da vida, o poeta
estará atento a esse rumor ácido que pontua os dias e saberá sempre, na
luminosidade de um verso, ultrapassar o instante porque Soberbos, porém, os dias/Assim cativos de pedras/e de medos, hão-de
transfigurar-se e criar raízes nesse território fértil, incontaminado das
palavras.
Um tempo
em que o poeta regressará aos itinerários da chuva, a soletrar estrelas, a
olhar o cristal da Lua reflectido nos lagos; retornará às coisas simples e
perenes, ao lugar secreto, inviolável, da nossa humanidade, a esse território
efémero e líquido, à Pradaria em
chamas/E potros dentro.
Neste novo
livro de Manuel Veiga coexiste uma contenção sintáctica, uma simplicidade
discursiva tocante, em que a metáfora (Anti-Metáfora, titula o autor) se dilui
na própria construção do poema, uma técnica de recursos linguísticos que serve
a ideia central sem recurso a barroquismos retóricos. O poema flui, mesmo
quando os versos contêm, na sua mancha gráfica, não mais de oito sílabas e o
comum dessa geografia se mantém ordenada por três versos.
Manuel
Veiga consegue, neste seu Perfil dos
Dias, em que o erotismo, que é sinal de apego à vida, percorre grande parte
do seu corpo diegético, uma voz mais serena, mais interiorizada do que lhe
reconhecemos de livros anteriores: há, neste livro, uma mais exigente depuração
oficinal, um mais amplo sentido das palavras, o seu íntimo rumor, como acontece
no poema Alegria Breve.
Neste Perfil dos Dias, encontramos a voz
recorrente do eu interior, esses fragmentos metafóricos da inconsistência do
Ser, essa busca, esse voo cego a nada como escreveu Reinaldo Ferreira, mas um
voo que traz o olhar do outro, porque ninguém viaja sozinho pela vida, sem a
sombra existencial, ora obsessivamente desejada, ora apenas intuída, ora
indispensável como respirar, do outro. Pelo meio desta complexa gramática do
corpo e dos afectos, existe a pertinência da busca de sentidos para o universo,
o cosmos como um derivativo de absolutos, em que a esperança se inscreve: Deslizam as águas em rios secos/Até à raiz
do nada.(...) Ou reserva de vida/Preservada: cópula de sol/E gota de água/E a
ansiada/Espera...
O que é a
matéria da vida? Essa Gota de água
ou cópula de sol, esse húmus que nos
conduz a uma contínua angustiante e perplexidade, a extensão dos sonhos, a
capacidade de, apesar dos pesares, linimentos de um corpo em lenta combustão,
conseguirmos reflectir, intuir sobre os sortilégios elementares, sobre o modo
(modos extensos, diversos) de estar vivo neste avassalador sufoco do tempo, que
a contemporaneidade, mesmo quando o poeta dela se resguarda (Lá fora o Mundo./Dentro o sopro de uma
sonata), convoca e limita?
A matéria
essencial (as palavras) sobre que especula Manuel Veiga, a construção da
palavra(s) com que ergue os poemas, e neles tenta redescobrir a Vida, traçar o
perfil dos dias que lhe coube (cabe) viver e o que à volta dela mais o
amargura, seduz, estremece e, a espaços, num indelével fulgor, vertigem dúctil,
extasia: o sexo, as paisagens, a literatura, as aves, os sonhos e a sua argila.
Essas nebulosas que a memória atrai, esse íman perene, são a matéria da
escrita, as palavras com que o poeta urde signos e os tenta libertar do seu
caos imanente, desse obscuro, telúrico chão, dessa massa que fecunda o fogo.
A poesia
de Manuel Veiga, balança entre territórios líricos e introspecções metafísicas e
é nessa dualidade expressiva que a sua poética se aproxima das metamorfoses
verbais que encontramos em poetas como Herberto Helder, Ramos Rosa ou Ricardo
Reis. É nesse alfabeto lírico, nessa gramática do Mundo, quase sempre magoada,
essa modelar forma de organizar o Acaso, mesmo que O Sol seja nuvem/E o meu fogo água//O teu corpo/céu aberto/seja. Um
discurso poético que entronca, por vezes, em outros poetas do modernismo como,
também, Mário Sá Carneiro.
Eis o
escorço mimético sobre que reflecte, e inflecte, a escrita de Manuel Veiga.
Formas modelares de pensar e entender a complexidade existencial e o mundo, os
contornos de um tempo, geracional forma de passear pelos dias (breves mas
azuis) e de lhes dar guarida, mesmo quando o alimento que nos dá é feito de
fragmentos reflexivos e sinédoques, de poemas transportadores de memórias,
mesmo quando estas se perdem na voragem dos dias: Eternos o tempo e o modo/ E o colapso de todas as memórias/Onde todas
as coisas/ Anoitecem.
De tudo
isto, penetrando o sensitivo orgânico desta matéria elementar, da “loucura
portátil” que é escrever, de que nos conta Enrique Vila-Matas, nos fala por
vezes, mesmo quando algum hermetismo percorre o seu corpo diegético, Perfil dos Dias. E fá-lo, nos momentos
mais conseguidos deste livro, numa escrita serena, atenta às íntimas
reverberações do léxico, fala expressiva e solar por vezes, A abrir-se na caligrafia muda das coisas/e no mistério
delas, percorrida por modelações sintácticas de uma sonoridade vibrátil,
sensível e ressumante de múltiplos aromas.
A poesia
enquanto matéria e sujeito de todas as incursões pelas palavras, Síntese de fogo lhe chama o autor,
deste especulativo modo de inventariação pessoal, de tábua de saberes íntimos e
prósperos – de estar Vivo, e estando, inventar o discurso poético da dispersão
elementar, do delta extenso que nos convoca à aventura, à exposição, às
interrogações metafísicas sobre o amor, a morte, a solidão, os corpos que se
amam e se perdem na voragem dos dias, o destino, seja isso o que for, a
cultura, a política, as plurais formas de habitar o espaço e deixar marcas em
poroso chão – um discurso poético que mais que ocultar as feridas, no-las dá a
ver, assim despido, sem âncoras nem temores, deixando a poesia fluir indomável
animal do espanto, que ela nasça e cresça no silêncio, ferindo-o, que aconteça
mesmo quando o sentido da harmonia lhe escapa.
A soletrar
a palavra transgressiva, sem um mapa, uma agenda, sem traços prévios nos
caminhos a haver, que a aventura de estar vivo e atento apenas nos deixa, dos
dias sôfregos A inquietação dos anjos/ E
o seio do barro redentor// E se glorifica eterna/ Na fusão do sonho/ E mágoa, dado
que A liberdade é essa chama, que o
poeta, incessantemente, almeja.
Mesmo
olhando o mundo, passeando essa “loucura portátil”, Manuel Veiga não deixa de
trazer ao discurso a diversidade conjuntiva com que esta fala se ergue e se
constrói, é nesse fulgor, nesse delta de raízes, que estes versos nos arrebatam
em sua contínua transfiguração.
Domingos
Lobo