quarta-feira, julho 31, 2019

MÚSICA E CÍTARA...


Que a cítara em teus dedos se desdobre
Nos sentidos em mim despertos...

E dos sons longínquos
Apenas eco e murmúrio e dor da ausência
Sejam em minha boca o brado

E a bruma se desvaneça
E tudo seja claro…

Que peregrino por ti
Me reconheço. E outra eternidade
Não quero…

Manuel Veiga





segunda-feira, julho 29, 2019

SILLY SEASON 2 - Um Conto Fantástico


Depois da estreia – Cena I

Caído o pano e apagadas as luzes, distendeu os músculos e ergueu-se da poltrona, onde gradualmente deixara as emoções da estreia, enquanto os ecos, aplausos e “encores” se esfumavam nas células nervosas, em ondas cada vez mais distantes.

Valera a pena! Não seriam necessárias as críticas nos jornais do dia seguinte para ter a certeza que o espectáculo fora um sucesso. Sabia, porém, que nas emoções do momento, naquela cartografia de sentimentos díspares, na osmose de sensibilidades em que durante meses se envolvera, secundária fora sua pessoa e pouco contara o seu tão proclamado talento: o apuramento de uma deixa, aqui ou ali, um acerto de luzes, um pormenor de guarda-roupa, uma leve correcção de marcação ou no registo de vozes, por vezes indispensáveis.

Porém, o teatro eram ELAS, essas duas mulheres sublimes, que por amor a elas, entrara naquele projecto, onde discretamente soubera imprimir a sua marca estética...

A ACTRIZ, vibrátil e intensa, transfigura-se no palco; e no nervo e no sangue de seu corpo, frágil e sensível, todas as culpas se redimem e todas as glórias, prazeres ou depravações mundanas, alcançam a beleza sublime do “Cântico dos Cânticos”...

A AUTORA coloca no coração da escrita a alegria fecunda da sua criatividade participativa, exposta e vulnerável, tantas vezes graciosa, onde flutuam, num jogo infinito de espelhos, heróis e vilões, sentimento calmos e funestas paixões...

Como não amar aquelas duas MULHERES? Adora-as... E, por amor a elas, comete pequenas/grandes traições, como aquela de, na encenação da peça, alterar o “final feliz” de deixar a heroína banhada em lágrimas, coberto o corpo nu com um lençol, como se tálamo nupcial fora, ao arrepio do que o público (e autora) esperaria. Mas a verdade é que não admitiria outro final, pois não suportaria vê-la assim exposta, nua, nos braços de outro homem...

Ama as duas, com paixão e ternura. Receia deixar fluir, um qualquer dia, a sua loucura mansa e, com o pano caído sobre o palco, com elas ensaiar a peça única das suas vidas. Sem outro guião que não seja a expressão livre do Desejo e sem outros aplausos que não sejam a cumplicidade dos corpos, à solta.

Depois do Teatro, a Ceia – Cena II

Possuído pela paixão, como se fora um veneno doce, que tolhe a consciência e despreza quaisquer outras emoções que não sejam o deleite de mergulhar nas suas ondas, o ENCENADOR, frente ao espelho, maquinalmente ajustou o smoking.

Olhou-se nos olhos e acendeu nos lábios o leve sorriso de ironia, que a si próprio concede em ocasiões como aquela, em que sabendo-se embora senhor de si, não pode, contudo, deter os fios da corrente do destino e, por isso, o “sim” ou o “não” se jogam numa centelha de intuição, mais que num exercício deliberado de inteligência.

Não, não iria à faustosa ceia, que o MECENAS, no seu palacete recentemente restaurado, decidira organizar para seu gozo pessoal e em homenagem a toda a companhia. Claro que tinha boas razões para ir. ELAS lá estariam requestadas, soberbas de charme e inteligência, dominadoras nesse palco sofisticado de mundanidades e prazeres fugazes. Mas não iria...

Não lhe agradava, especialmente nessa noite de consagração, ter de sentir-se refém do seu talento, escutar cumprimentos, brandir sorrisos, responder às perguntas imbecis dos jornalistas “culturais”, que certamente estariam em peso. Mas, sobretudo, preferia evitar o espectáculo do sorriso predador do MECENAS, cobrindo de elogios e atenções aquelas duas mulheres, alfa e ómega de seus êxtases. Se havia algum sucesso a comemorar deveriam ser apenas os três: qualquer intromissão seria perturbar o divino sopro do equilíbrio perfeito...

Não iria, pois! Num gesto brusco desfez o laço e libertou-se do smoking, enquanto se dirigia para o seu recanto predilecto na biblioteca. O sangue, porém, continuava a latejar de inquietação. Bem sabia ele que o MECENAS as desejava tanto, quanto ele próprio. E que sua momentânea desistência seria pretexto suplementar para os “avanços” do adversário. Mas não contaria com ele naquele espectáculo de sedução. Ponto final!...

Sempre assim fora a estranha relação entre os dois homens...

Eram amigos desde sempre!... Oriundos, ambos, de uma certa aristocracia arruinada da província, percorreram meio século de vida, adivinhando-se nos caminhos, nem sempre dóceis, trilhados por um e por outro. Fora assim no liceu, na faculdade, mais tarde em Paris, partilhando estudos, gostos, aventuras e mulheres - como se vida de cada um fosse réplica da vida do outro. Melhor: como se, por um qualquer acidente do destino, a vida de cada um realizasse neles o mesmo percurso matricial!...

Apenas o rosto e a profissão os distinguia. E, evidentemente, a ostentação da riqueza material. O sucesso empresarial fizera do MECENAS um homem prodigiosamente rico...

Em vão, buscava o ENCENADOR, envolvido no turbilhão destes pensamentos, refrigério para o estado febril e para aguilhão do desejo que, em sua imaginação exacerbada, teimava em queimar-lhe a carne. Afastou, assim, com os dedos, as gotas de suor que, como orvalho matinal sobre pétalas, lhe ornavam a fronte e retirou da estante o LIVRO.

Sempre o mesmo livro quando, como agora, a alma delira e o corpo requer o calor de outro corpo. Abriu, assim, ao acaso, as páginas do “Fausto” de Goethe e soletrou, intimamente, o seguinte diálogo:

Fausto: -“Batem? Entre. Alguém me vem amofinar”.
Mefisto: - “Sou eu!...”
Fausto (enfadado): - “Entra lá!...”
Mefisto: - “Ora assim é que é falar, acho que vamos dar-nos bem...

Não teve mais tempo para prosseguir a leitura. O portão da entrada ribombava de impaciência. Abriu. ELAS ali estavam, cobertas de glória. A AUTORA envolta num esplêndido vison castanho. A ACTRIZ com uma estola de arminho sobre os ombros, fazendo ressaltar o azeviche dos cabelos.

Da penumbra do hall, sem cerimónia, o MECENAS irrompeu e gargalhou, numa reprimenda fingida: - “Como não quiseste estar na minhaaaa Ceia - sublinhou, trocista – viemos nós celebrar contigo...”

Depois da Ceia o Jogo – última Cena

Entraram. O MECENAS balanceava ainda o corpo na gargalhada e ocupava todo o espaço no jeito peculiar de seus movimentos felinos. ELAS, com um brilho especial nos olhos, prenunciador das grandes explosões luminosas que, uma e outra, guardavam na subtileza e graça de seus gestos.

“Jogamos?!...” – perguntou a ACTRIZ num murmúrio, enlaçando-o. Sentiu o ENCENADOR a carícia doce de seus cabelos na face e o lume dos olhos negros devassando os seus.

Pressentiu, então, uma peça cujo alinhamento desconhecia. E a AUTORA, num sorriso de cumplicidade, entre irónica e decidida, acompanhando as palavras com um beijo: - “Viemos aqui para jogar, sabias?”

Contrariado, com o olhar interrogou o MECENAS: - “Não te vires para mim, estou tão inocente quanto tu...” – disse este, rindo com gosto, suspendendo, por momentos, o gesto de abrir o champanhe. “Mas por mim, aceito!”- acrescentou, forçando a intensidade da gargalhada.

O ENCENADOR compreendeu que estava “cercado”. E, se pretendia dominar a cena, teria que tomar a iniciativa.

- “Seja!.. Joguemos, pois!”, anuiu. E, libertando-se do abraço: - “Mas já que jogamos, façamos deste jogo uma obra de arte!...”

E, em passadas largas pela sala, frenético, em súbita iluminação, descreveu cenário e as regras do “espectáculo”. Jogariam, como se aquele jogo fosse o último acto de suas vidas. Nus e com máscaras, como se toda a vida passada se desfizesse em pó nos passos percorridos...

Portanto...

Ao centro, a mesa de jogo com pano verde cuidadosamente aberto. Apenas a luz crua da lâmpada solta reflexos doirados sobre os rostos, cobertos de máscaras barrocas: o MECENAS, com uma máscara estilizada de Dionísios; o ENCENADOR, com a ”carranca” de um velho Fauno.

ELAS, mais subtis, escondem o rosto em mascarilhas de seda... Azul, uma, sob a qual espreitam os olhos de uma luminosidade intensa. Negro e branco a outra, sugerindo, vagamente, o esboço de um Pierrô...

- “Para quê jogar se conhecemos o resultado?” – exclama, num sorriso melífico, Dionísios. – “Depois do jogo” – exclama, misterioso - sobrará  apenas o esboço ténue de nossas máscaras, flutuando no espaço...”

- “Jogaremos!...” – teima categórica a mascarilha azul, que bem conhece as subtis ironias de Dionísios e as suas blagues para lhes conceder qualquer importância. E assertiva: - “todos nós, os quatro, somos jogadores e apreciamos o jogo pelo prazer de jogar...”  E, empolgando-se: -   “Já que Deus não joga aos dados, enfeitemo-nos nós de deuses e joguemos!...

E o velho FAUNO, que outra coisa não quer que não seja o calor dos corpos na intimidade do jogo e a colheita sinuosa das almas, em cada lance, declara, enfático: - “Joguemos, pois!... E saibamos guardar a memória do jogo, como o vinho guarda o perfume da vida...”

Toda a noite jogaram, intensos e vibrantes. Subindo mais e a parada. Como se cada lance, fosse o orgasmo primordial. Ou, como se o universo se esgotasse na energia fálica dos dedos sobre a mesa de jogo...

Raiava o dia, naquele casarão decadente nos arredores da grande urbe: -“Ficamos por aqui!... “ – declara, categórica, a mascarilha azul – “o sol não tarda a nascer e eu quero estar em casa, antes das crianças irem para o Colégio...”

Ganhara. A mascarilha azul ganhara um bom pecúlio de letras. Jogara inteligente e contida e ganhara, pois bem sabia que nunca se jogam emoções num primeiro jogo e, sobretudo, numa única jogada.

- “Saio contigo!...” – diz a mascarilha “pierrô”, alvoroçada com os preparativos de uma viagem em perspectiva. Como jogadora exímia, acumulara também emoções às emoções que trouxera!...

Restaram DIONÍSIOS, com seu riso sardónico, e o velho FAUNO, que abatido se levantou e tirou a máscara. Atravessou, com elegância o salão até ao candelabro, onde se finavam as velas. Acendeu uma cigarrilha negra, juntou o polegar com o indicador e, se qualquer esgar de dor, apagou uma a uma, todas as chamas com os dedos.

Liberto assim da sua condição ou destino de velho FAUNO, voltou-se o ENCENADOR, num arrepio de gelar corpos e almas. Perplexo, deparou com a máscara tombada de Dionísios e, em vez do MECENAS, em seu lugar, sentado, estava ele próprio, com o seu próprio corpo e seu rosto duplicados!..

Cumpria-se, finalmente, num único lance, o drama órfico e o destino paralelo do ENCENADOR e do MECENAS, tantas vezes prenunciado, nos dias faustos e infaustos de suas vidas, qual moeda cunhada de uma única face.

O abalado ENCENADOR acordou de seu torpor, com uma voz cava, que soava pelo velho casarão, vinda de além do Tempo: -“No delírio dos corpos, quiseste colher almas!... Espero que esta derrota te ajude a compreender a tua...”

No ar pairava intenso odor a enxofre. Como espectros, AUTORA e ACTRIZ acenavam do espaço, sem se saber, se como chamamento ou como despedida...De um canto da sala, Mefisto, saído de uma qualquer página do “Fausto”, esguichou uma gargalhada (ihihihih) e desapareceu envolto em fumo denso...

…………………………………………………………

E narrador destas cenas, que não é um homem justo e que, por vezes, tem a pretensão de jogar aos dados com a vida, declara que ateia fogo, em praça pública, às palavras e cenas atrás (d)escritas, em expiação, não de seus pecados ou culpas, mas de seus exageros...

(texto reeditado)

Manuel Veiga



domingo, julho 28, 2019

POEMA A PRETO E BRANCO...


Quando for grande quero ser um poeta
Imensooooooo… E um senhor bem-posto!...
(Está mais que visto!...)

E hei-de cantar (e voar) como os passarinhos
E serei pintor de arco-íris festivos…

E de porta em porta e por todas as esquinas
Andarei a apregoar meus préstimos
De almocreve de metáforas e pintor
De sonhos coloridos…

Mas por enquanto, não! Por enquanto,
Colho todas as cores tresmalhadas que guardo
Na minha caixa de milagres. E deixo
A macerar em fogo aceso
Até ao branco mais puro…

E, então, nessa brancura alva, derramo
Minha alma nua. E ergo (a preto e branco)
Uma flor de cacto, que fenece
Como nasce – num murmúrio!...

Ou, porventura, uma prece!...


Manuel Veiga

quinta-feira, julho 25, 2019

SILLY SEASON - Estórias da Sãozinha 1


A Sãozinha era a menina mais aplicada da turma. Declinava o “rosa, rosae” como nenhuma outra. A boquinha em botão, em pudor de rosa por abrir, a Sãozinha era um anjo saído da talha dos altares barrocos - que aliás frequentava com esmerada devoção...

O “Begin” era então rapaz em fim de adolescência, que pouco se prendia à Sãozinha e ao latim. Eram a iniciação aos poetas proibidos e os seios da Nanda, que queimavam em seus dedos e sua imaginação. É verdade é que, por vezes, na fantasmagoria da noite, com os beijos da Nanda, se misturava o “rosa, rosae”, dos lábios da Sãozinha. Mas, nesse jogo alucinado, a Nanda levava sempre a melhor...

A Faculdade separou-os. A Sãozinha foi aluna brilhante, com auspiciosa carreira académica, não fora o sagrado apelo do matrimónio. Casara nova, com um distinto clínico, director do Hospital local e a investigação académica perdeu-se na fecundidade dos laços matrimoniais. Ganhou, porém, a cidade uma extremosa esposa e mãe, santas tarefas acumuladas com beneméritas obras de caridade e cargos de prestígio.

Passaram anos. E a juventude. E grande parte da vida vivida. O “Begin” - amável alcunha do Liceu em que o narrador teima - subia à cidade natal de longe, em longe. A Sãozinha era então incontornável. Um modelo virtudes familiares, lhe contavam prazenteiros os antigos condiscípulos, em vaga evocação de juvenis derriços.

E nessas raras idas e vindas, os dias se cumpriam. A Sãozinha bem instalada no topo da sociedade local, como aliás o seu estatuto de menina exemplar de outros tempos fazia prever, e o “Begin” arrostando penosamente códigos e leis, como enxada e arrimo, noutras paragens, bem mais áridas.

Eis senão quando, inesperadamente, para pasto maldizente da cidade, rebentou a notícia de que o marido da Sãozinha, ilustre clinico, epígono da política local e deputado da República, uma noite fora surpreendido pela GNR, numa estrada escusa, dentro do automóvel, em descompostas posições, com um enfermeiro do hospital.

Ao desgraçado soldado da GNR, que buscava contrabando, saiu material bem mais quente. Que na sua boçalidade, não soube tratar com o devido cuidado – não aceitou (como devia) a robusta nota com que o clínico lhe acenou. Tal imprevidência, só não provocou a queda do “Carmo e da Trindade”, pelo facto de nem a Trindade, nem o Carmo terem sido achados em tal assunto, mas, sobretudo, porque a provinciana cidade não teria espaço para tamanho estrondo.

Em qualquer caso, foi uma nódoa imensa naquela impoluta cidade, a exigir limpeza rápida... O “pasquim” da oposição “ladrou” por uns tempos, o jornal do bispo clamou sobre “campanhas torpes contra cidadãos impolutos”. E do púlpito o clero vociferou-se contra o pecado da calúnia.

Entretanto, o comandante da GNR local foi transferido, o incauto soldado que meteu a boca no trombone antecipou a reforma, reformado compulsivamente e, a breve trecho, a paz voltou ao reino, quer dizer a santa beatitude do burgo.

Hoje, apenas uns inveterados “más-línguas” recordam o episódio, em surdina, para seu gozo incréu e maledicente. Mas também a beatífica Sãozinha não perdoou, como vos darei conta.

Por razões que não interessam à história, quis o acaso que, uns alguns anos após, o nosso “Begin” tivesse a honrosa missão de apresentar a Sãozinha a uma pequena assistência, disposta, enfim, a escutar os feitos de um apagado vulto da primeira República, originário da cidade, que em Lisboa fora vagamente jornalista e assanhado carbonário, mas que a sociedade local, com o deslassar dos anos e por força do clericalismo reinante, ignorava. E que, por uns quantos, era até considerado como epígono do “trauliteirismo” monárquico que, à época, grassara na região.   

Entretanto, com o 25 de Abril, a família do ignorado republicano retirou do sótão a sua correspondência e outros documentos, que foram doados a uma instituição cultural, de que inevitavelmente a Sãozinha era zeladora. E que, como historiadora emérita, a estudara meticulosamente, queimando seu precioso tempo e prodigiosos neurónios. Estava, portanto, a Sãozinha com avalizadas provas, apta desfazer o equívoco e repor a verdade histórica.

E, antes de subir aos meios académicos e aos corredores do poder cultural, numa espécie de ante estreia, quis a Sãozinha bafejar, com sua erudição, a colónia de emigrantes, seus conterrâneos, residentes na Área Metropolitana de Lisboa. Um acto prenhe de sentido, como compreenderão, pois que mergulhar, culturalmente falando, nas “bases”, permitiria à estulta Sãozinha refazer, perante o poder revolucionário da época, a sua imagem de beata e mulher conservadora.

Um gesto de grande iluminação, portanto. Primeiro degrau - dir-se-ia - na ascese da consagração futura...

Foi neste contexto, portanto, que Sãozinha e o nosso “Begin” se reencontraram uns anos depois das borbulhas da juventude. Ele, vagamente esquerdista e algumas pretensões, presidindo à cerimónia. Ela apta a brilhar em Lisboa, esmagando os circunstantes com sua graça e saber.

Foi assim, como passo a descrever...

Uma vistosa colcha cobria a mesa completamente. Ao centro, um ramo de cravos vermelhos. A bandeira da República e o estandarte da instituição entrelaçados armavam o décor, imprimindo solenidade à cerimónia. Na sala, uma escassa dezena de pessoas, que se estendiam pelo amplo salão, cochichando murmúrios e bocejos. Na mesa, apenas os dois, a Sãozinha e o “Begin”. 

Desembaraçados os cumprimentos, passou-se “a substância” da coisa, com o “Begin” a tecer rasgados elogios, perante o leve rubor a adornar a face da Sãozinha, sobretudo, quando o improvisado presidente da cerimónia evocou a sua devoção ao estudo, bem como o exemplo de suas virtudes familiares e – the last, but not the least - a sua consagrada beleza, que faziam dela a menina mais requestada da turma.

O sorriso cândido e enternecido deixava antever o prazer da Sãozinha e quiçá novos e mais fecundos desenvolvimentos nessa amizade da juventude.

De facto, ainda o preâmbulo da oração ecoava e já perna esquerda da Sãozinha se engalfinhava no joelho direito do nosso “Begin”, agora respeitável cidadão e paradigma elogiado de “bonus pater familia”!

- “Que fazer?” - Perguntava-se, naquela emergência, o “Begin”, entre perplexo e divertido, sentindo a perna da Sãozinha cada vez mais afoita. Aguentar o despudorado assédio, não havia outro remédio. Seria um escândalo!... E quem se atreveria a tal? Tanto mais que, de vez em quando, a Sãozinha para ele se revirava, com um sorriso inocente, pedindo assentimento para as suas palavras sapientes.

Que ele dava, claro!... E assim durante quase duas horas até a perna do “Begin” se sentir, por fim, aliviada. A Sãozinha arrasou literalmente a assistência, naquele espaço suburbano, onde muitos cabeceavam, despertos, certamente, para empolgantes discursos políticos, feitos chama da Revolução, mas pouco dados a escutar, na voz monocórdica da Sãozinha, as peripécias republicanas de um tipo qualquer que, a maioria deles, nunca tinha ouvido falar.

E a cerimónia passou a história. Dela restou apenas a suave pressão da perna esquerda da Sãozinha, a soltar perturbantes rugidos eróticos no nosso pacato “Begin”. Descansem, assim, as almas mais generosas e compreensivas. O nosso “Begin” e a Sãozinha festejaram, mais tarde, num hotelzinho simpático, o prazer do reencontro

E, por motivos óbvios, a Sãozinha passou a frequentar Lisboa com maior assiduidade. Compreendam os mais cépticos (ou os mais cínicos) que a sua erudita tese a tanto a obrigava, sabe-se lá com que sacrifício dos seus deveres familiares.
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A Sãozinha mantinha então a frescura indecisa de uma balzaquiana bem cuidada. A pele fresca e os seios juvenis. Chama-lhe “príncipe” em saboroso recorte queirosiano! - “És o meu príncipe!”- suspira, melodramática. Do marido, garante, nunca mais deixou tocar-lhe, depois da cena com o enfermeiro: - “Um cabrão, panilas!” - solta  com asco.

Mas toda ela se dá “ao seu príncipe” em arroubos amorosos e deliciosas indecências. O “Begin” pasma de tanto talento!

- “Quem tal diria!?” - Sorri para os seus botões.

Ela gosta de o mimar. Traz-lhe novidades da terra e petiscos regionais. Que gostosamente cozinha para ele. Em dada ocasião, foram morangos. “Os primeiros da quinta”, como garantiu. Comidos na cama, enquanto, em pelota, desfilava a cidade: o labrego do presidente da Câmara, o negócio de carros importados do Governador Civil, a última amante do Bispo, verruga de Fulana, a unha encravada de Sicrana.

Um desfile de cortar a respiração. Que ele aceita com um sorriso complacente. E, quando termina, a Sãozinha quer um beijo.

- “Chega por hoje!...” – diz ele, evitando a boca...

Manuel Veiga


quarta-feira, julho 24, 2019

NO COLAPSO DOS MURMÚRIOS ...


Na arquitectura dos lábios
Todas as demoras
Se inauguram
No colapso
Dos murmúrios…

Apenas a febre
Dos corpos. E as salivas
Na ardência
Dos sentidos
Se iluminam…

E se dizem
Presença. Na majestade
Dos cumes.

E das cúpulas.

E no espasmo
Das planícies …


Manuel Veiga

segunda-feira, julho 22, 2019

NUDEZ DA VERTIGEM...


Abolimos as palavras que sabemos gastas
E riscamos todos os nomes. E todos os registos.
E inventamos um abecedário
De gestos delicados
E eloquentes
Silêncios.

E balbuciamos a raiz da água
Na singeleza das coisas que se negam
À superfície. E habitam
A nudez da vertigem.

E cuidamos ciosos da claridade
Que das esferas resplandece.

Por vezes, tresmalhados
São os ventos. Deles colhemos, porém,
O perfume e o fervor
Com que soltamos a cinza
E dulcificamos
As mágoas.

E domamos os abismos.

E, soberbos, nos damos
Na libertação das quimeras
E dos símbolos.

E na glorificação dos corpos…


Manuel Veiga


sábado, julho 20, 2019

SORRISO DO POETA...



Tomba a palavra sobre a mesa
Desguarnecida e nua…

E logo se inflama – natureza morta!...
E assim perdura. Festiva.
Enquanto dura
Se é que dura…

E se derrama – excessiva!
Por vezes cálida – sobre a superfície
Neutra, lisa e fria…

Sorriso do poeta - recolhendo a palavra
E colhendo o dia!...


Manuel Veiga




quinta-feira, julho 18, 2019

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 18


É pois da ordem das coisas narradas que se persigam os fios soltos desta prosa que, em passo mal calculado, se pretende literária e que, de Manuel Maria se dê notícia, ansioso como era e o deixamos no Salão Nobre dos Paços do Concelho, naquela emergência de tempos desatados, também sala de espera, o dito Manuel Maria longe ainda das suas incursões literárias, que tempos mais tarde iriam ser fechamento e pedra nodal do seu projecto maior, ou seja o projecto da sua própria vida, mas então apenas jovem arquitecto a apostar todos seus sonhos e toda a sua energia e conhecimentos na realização de uma Arquitectura para o Povo, em que genuinamente acreditava e, por isso, ali estava, naquele amplo salão, ladeado por retractos e símbolos da Primeira República, aguardado a entrevista, com José Augusto Esquerdino, recém-eleito Presidente da Comissão Administrativa, em vista acertar os pormenores da sua colaboração com aquele grande Município da Área Metropolitana de Lisboa.

A decisão política quanto à oportunidade dessa colaboração, fora, entretanto, tomada em instância partidária, fundamentada na convicção de que a importância desse Município de grandes tradições democráticas e de luta contra o fascismo, que continuava a crescer desordenadamente e atrair pessoas de todas as regiões do País, e que, portanto, requeria, medidas excepcionais e apoios excepcionais, em vista, na senda dos ideais da Revolução, estabelecer naquele Município às portas de Lisboa um modelo de desenvolvimento económico-social, assente no planeamento estratégico e na participação popular, ao mesmo tempo que, gradualmente, se resolviam as graves carências habitacionais do Concelho, cujo território era preenchido por densas áreas de barracas e construções clandestinas e, assim, mediante a participação directa das populações na resolução dos seus problemas concretos se daria expressão às ideias e teorias sobre a uma Arquitectura para o Povo, tão caras ao jovem arquitecto e que tão produtivas poderiam ser, especialmente, naquele território municipal, densamente habitado e cuja configuração geográfico-política, se revelava de elevada importância, no evoluir dos acontecimentos políticos e, até mesmo, na própria evolução do processo revolucionário.

Foi, assim, sem surpresa, embora com retraída prevenção, que Manuel Maria se sentiu envolvido pelo acolhimento caloroso e pelo sorriso rasgado de José Augusto Esquerdino, que, acentuando o sorriso, colocava na voz uma acesa ironia, então, meu rapaz, sempre te conseguiste safar do cavalo da GNR? Sangravas que nem um Cristo!... Para baptismo de fogo, não estavas nada mal …

Manuel Maria não conhecia, ou julgava não conhecer pessoalmente, José Augusto Esquerdino. Mas sorriso irónico e amável e trocista, sobretudo, a alusão à feroz repressão policial dos protestos, na Baixa de Lisboa, escassos tempos antes do “25 Abril” e a memória daquele vendaval de pancadaria em pleno Rossio, que ninguém poupou, nem manifestantes, nem transeuntes, nem novos, nem velhos, nem turistas, nem lojistas, nem caixeiros, com o nosso herói ocasional a sangrar e a correr, Rua do Carmo acima, quase filado pelas patas do cavalo e pelo bastão do “gnr” não fora o providencial puxão que o arrastou para dentro de um tapume de umas obras, seguindo cavalo e o bastão policial no alcance de outros manifestantes, menos afortunados, ecoou como um clarim no cérebro de Manuel Maria, até aí todo ele focado no objectivo do encontro, ou seja, procurando os melhores argumentos sobre as suas teses de Uma Arquitectura para o Povo, que melhor pudessem convencer um leigo na matéria, como presumia ser o Presidente da Comissão Administrativa e, agora, ele, Manuel Maria, novel arquitecto, com ideias firmes sobre a sua profissão, a ficar cada vez mais perplexo e intrigado, ante a visível manifestação de gozo do seu interlocutor, que parecia brincar ao gato e ao rato, com a sua perplexidade, pois que, mal refeito ainda do primeiro embate, já José Augusto Esquerdino disparava, imparável tens tido notícias de Terras do Demo? – e, num olhar ausente e neutro, agora encolhendo o sorriso – nunca mais lá voltei desde que dali saí … 

E antes poder esboçar qualquer um gesto ou articular palavra, ou poder demonstrar alguma expressão de júbilo, ou de surpresa, ou poder esboçar qualquer agradecimento, certo que estava agora na posse da identidade do seu salvador, naquela tarde inesquecível, de correrias e protestos e de descabeladas pancadarias policiais, a que ficara a dever uns hematomas na cabeça e o sangue a escorrer pela face, factos esses tão vivos que selaram para sempre a solidez das suas convicções políticas, antes mesmo de Manuel Maria poder esfregar os olhos e dominar a surpresa, ficava de novo submerso pelo ímpeto abrasivo do Esquerdino que, sem se deter em considerandos ou estados de espírito, por legítimos que fossem, se levantou da secretária, donde ainda não saíra e, mudando de rumo à conversa, arrasta consigo o constrangido Manuel Maria – um dia destes falaremos desse e de outros assuntos, hoje temos mais que fazer.

Atravessaram, num instante, a sala do Gabinete de Apoio, não sem que antes, José Augusto Esquerdino tivesse que assinar, depois de um olhar de relance, uns papéis, que a camarada responsável lhe estendeu como urgentes e percorreram, assim apressados, a escadaria interior e o átrio de entrada do edifício, por entre apertos de mão e amistosos acenos dos munícipes, que se aglomeravam, junto aos guichets de atendimento dos serviços municipais e, alcançaram a rua, onde, em frente à escadaria exterior, permanentemente, aguardava uma viatura ao serviço da Presidência do Município.

Dispensou o motorista e tomou o comando da viatura – sabes conduzir, rapaz? Vais precisar carta de condução! A tua primeira tarefa é tirares a carta – intimou ele, José Augusto Esquerdino, ora arvorado em Presidente da Comissão Administrativa, perante a negativa do Manuel Maria. E assim arrancaram velozes – que o seu problema maior era a falta de tempo – o motorista no banco de trás do Jeep, Manuel Maria ao lado do improvisado condutor, permanecia perplexo e mudo, afundado nos seus próprios pensamentos, ante a fogosa loquacidade do Camarada Presidente, que enumerava projectos e urgências pelos locais onde passavam, ali uma escola, além uma creche, acolá um centro da 3ª Idade, mais além um polidesportivo, um parque, uma estrada a precisar obras, um edifício histórico a necessitar recuperação, ali o saneamento, acolá a electricidade e fornecimento de água, mais além uma colectividade centenária, uma biblioteca ou uma banda música, aqui uma empresa intervencionada, que o patrão raspou-se para o Brasil deixando os “calotes” para os trabalhadores pagarem, mais além uma comissão de saúde a solicitar apoio para uma unidade de saúde familiar, por todo lado, reivindicações e necessidades sociais tanto tempo abafadas e que, com a Revolução, explodiam, em urgência, a que era necessário acudir, qual sangria desatada.

Manuel Maria desdobra-se em atenção, procurando, por cima das palavras do companheiro, sacudir seus próprios pensamentos, mas a verdade é que eram os pensamentos e não as palavras que lhe tomavam o espírito e, sem se dar conta, as mãos de José Augusto Esquerdino, enormes, ora filadas sobre o volante da viatura, como quem esgana inimigo imaginário, ora leves, como um bailado, acrescentando assertividade e eloquência ao fervor da descrição das expectantes obras, eram pois essas mãos, que o salvaram, numa tarde quente de repressão e luta, tão grandes mãos como aquelas, apenas outras vira, grandes e enormes que ocupavam agora todo o espaço de consciência, como se Manuel Maria fosse possesso de assombração ou de iluminação divina e apenas aquelas mãos fossem e que, criança ainda outras mãos iguais, enormes, que na fantasmagoria da distância, na mente da criança, que então era, iam da Terra aos Céus, alongando-se pelo espaço e homem rodeado de mulher e filhos, crianças como ele, maltrapilhos e pés descalços sobre a geada e o homem erguendo as grandes mãos em súplica, mãos de trabalho e de afagos, agora erguendo-se até ao Céu pedido perdão e o povo a sair da missa, impotente, a baixar o olhar à passagem, e o homem, cá fora ajoelhado, com mulher e filhos descalços e maltrapilhos, pedindo perdão a outro homem, à cavalo, impante de soberba e prepotência.

Tão forte e tão real a imagem que Manuel Maria, num gesto reflexo, escondeu o rosto no braço, como outrora o escondera no afago da mulher que o levava pela mão.

Não passou despercebida a José Augusto Esquerdino a perturbação de Manuel Maria que o inquiriu com olhar penetrante, como se lhe bebesse a alma e este, num sorriso rasgado, lhe devolveu as palavras com que momentos antes o brindara um dia destes falaremos deste e de outros assuntos, hoje temos mais que fazer. Prazenteiro e sorridente o José Augusto Esquerdino, com uma vigorosa palmada nas costas do atordoado Manuel Maria ora assim é que falar …

E assim prosseguiram para a reunião com a população, que os esperava …


Manuel Veiga




  

segunda-feira, julho 15, 2019

MILENAR FOGUEIRA ...


São por vezes generosos os deuses soltando bênçãos
E caprichando desenfados no coração dos homens
Em tardes benévolas e quentes...

Sereníssimas as Mulheres a abrir seus mantos
E a soletrar o Milagre. E a cortar o pão.
E a ministrar o vinho.
Prudentes e sábias.

E a habitar toda a casa. E a tricotar conversas
E açucenas no rosto do dia pleno.

No pátio os homens soltam revoadas.
E gargalhadas.

E bebem apaziguados.
E límpidos...

E a paisagem verde ao fundo a devolver o Eco
E o murmúrio de Pã penetrando nos sentidos...

No interior do círculo uma rosa acesa – milenar fogueira!
Que um Poeta irá plantar em chão fecundo.
Como perfume da Memória
E essência pagã da Vida...


Manuel Veiga



sexta-feira, julho 12, 2019

MEU SAL MARINHEIRO


Navego canela e marfim em meu sal
Marinheiro. E desato os mares.
Que porto abandonado
É fogo ardido...

Corsário de desígnios altaneiros
Em cada gesto de amarar eu me fundeio.
Cartografia dos sentidos
Rebentando as veias...

A bruma é o luar. E a vertigem
É vaga cheia...

Não mais bandeiras. Outras.
Apenas o convés engalanado
E o mastro altivo...

Tão grávida de Índias
Minha galera de glórias passageiras...


Manuel Veiga





terça-feira, julho 09, 2019

ARFAR SOLITÁRIO...


Abrasa o sol nesta miragem. A distância é o voo
E a canícula. E a ave soletrando o círculo.
E o zénite...

E a violenta bordadura de azul no fio de meus olhos
Agitando a brisa cálida...

E o grito calcificado do restolho.
E o cardo a dançar no vento.
E a poeira…

E a gotícula lambendo a pele nua.
E os lábios gretados. E a sede das horas
E os passos sobre o eco...

E o arfar solitário.
……………………………………………………….
Infinita esta paisagem em que me detenho
Como planície inventada
Ou voo quebrado...

Estridência de cigarra acesa
Ou secreta cotovia em alvoroço
Adejando por dentro.

E o milagre
E o canto
Inesperado...

Manuel Veiga




domingo, julho 07, 2019

MELODIA E ECO...


Cítara de teus dedos. Em mim despertos.
E em ti libertos – melodia e eco
E meu corpo

Murmúrios – a moer alvoroços
E me rendo – teu corpo
A sorver os mostos.
Meu frémito.

Peregrino – me reconheço.
E devoto. Dia em que te digo.

E em ti me fico
Que outra eternidade
Não quero.

Meu abrigo – teu porto!


Manuel Veiga



sábado, julho 06, 2019

MELOPEIA ...


               Inscreve-se o nome
Na excessiva letra
Intrometida
Como uma gota
Tonta...

Ou uma nota perdida
Na voz quebrada
Da espera
E na cadência
Da demora

Melopeia
Mais nada.


Manuel Veiga

Orquestração de Hinos

  Polpa dos lábios. E a interdita palavra Freme… E se acolhe Em fervor mudo E sílaba-a-sílaba Se inaugura… Percurso De euf...